28 de jun. de 2011

FAZENDO E VENDENDO COXINHAS

Estávamos no início de 2.008, a ideia de fazer coxinhas tinha vindo depois de uma longa viagem à Ubatuba. Depois de várias tentativas de fazer uma coxinha diferente de todas aquelas já existente, conseguimos fazer uma que era diferente de todas as outras. Fizemos um verdadeiro “laboratório experimental” com temperos, recheios e o sabor foi ficando cada vez mais afinado com o paladar de todos.
      Após um período de dois meses em Ubatuba na casa da tia Ana, onde testamos várias receitas, chegamos a uma que colocamos o nome de Coxinha Caiçara e era esta receita que apresentei para minha filha e disse que a partir daquele momento iríamos viver de fazer as tais coxinhas e vendê-las pelo comércio local da Vila Maria Alta em São Paulo-SP e redondeza.
      Minha filha ficou estupefata com a ideia, mas como não tinha outra opção, pois morávamos numa pequena casa de aluguel, eu minha filha e minha netinha. Abraçou a ideia para não passarmos necessidades e assim começamos nossa atividade de salgadeiros, especificamente fazendo a tal da coxinha caiçara.
      Fazer as coxinhas não era problema, pois já tinha dado certo no litoral e não tinha como dar errado na capital, já que o sabor era deliciosíssimo, a textura surpreendente, sequinha. Combinamos um preço bem razoável, fizemos as primeiras quarenta unidades e saí pelo comércio local em busca de nossos novos clientes. A dificuldade foi enorme no início, pois ninguém conhecia nossas coxinhas e todos se mostravam cépticos em relação ao nosso produto. Foi uma grande batalha no início para provar para todos os novos clientes que estávamos vendendo um produto de qualidade, muito delicioso e que todos deveriam provar.
      Trabalhar por conta própria é muito bom, mas exige um esforço enorme. Levantava-me às 6 horas da manhã e ia comprar os ingredientes num mercado próximo de casa, preparava tudo, desde colocar o frango para cozinhar, até os temperos para podermos fazer a noite.
      Lá pelas 8 horas da manhã começava a fritar vinte coxinhas e ia vendê-las pela redondeza, vender salgados de manhã não é lá tarefa muito fácil, mas precisávamos e não tinha para onde correr e lá ia eu com minha caixa de isopor, uma garrafa de café que oferecia de brinde aos meus clientes. Quando estava próximo do meio-dia já tinha vendido todas as coxinhas e aí retornava para casa, almoçava e ficava esperando dar 2 horas da tarde para fritar mais vinte coxinhas e sair à tarde.
     Os clientes já estavam conquistados, tinha em média uns vinte clientes fiéis que adoravam nossas coxinhas, o restante era conquistado dia a dia, andando muito, tomando muita chuva, entrando em quase todos os estabelecimentos comerciais e esbanjando carisma, bom humor e sempre enaltecendo a grande diferença das nossas coxinhas e das outras encontradas pelos bares e padarias do bairro.
      Todos os dias era uma grande batalha, pois dependíamos de vender as quarenta coxinhas todos os dias e o dinheiro arrecadado era para pagar o aluguel, água, luz, comprar fraldas e leite para a netinha e um pouco de comida para nós.
      Foram oito meses vendendo todos os dias em média quarenta coxinhas e algumas histórias interessantes aconteceram neste período. Num sábado quando minha filha estava fritando as coxinhas o gás acabou e ela desabou a chorar dizendo que estava cansada de ser pobre, soltei um grande sorriso e disse que também estava cansado, mas não era de ser pobre e sim de andar como um burro pelas ruas do bairro, ela sorriu entre algumas lágrimas e foi comprar o gás fiado.
       O secretário de uma escola estadual pediu para vendermos as coxinhas num sábado à tarde na escola, pois alguns alunos estariam na escola para aulas de recuperação. Fizemos cinquenta coxinhas e fomos até a escola e chegando lá, simplesmente não havia ninguém, as aulas foram adiadas. Ficamos aflitos, sentamos na beira da guia e ficamos imaginando o que faríamos, até que escutamos barulho de instrumentos musicais vindo do clube  Thomas Mazzoni, fomos correndo até lá, onde estava acontecendo uma final de campeonato de time de futebol, tinha muita gente, subi as arquibancadas e fui vendendo, vendendo e após uma hora já tinha vendido todas as coxinhas, fomos embora muito feliz e com grande alívio , tínhamos garantido nossa próxima remessa de coxinhas, naquele dia compramos até uma pizza para comemorar nossas vendas.
         Numa sexta feira a tarde apareceu meu sobrinho Leandro e seu filho Diego comprou toda a “carga” de coxinhas, ele ainda trouxe várias latas de cervejas, onde bebemos e comemos todas as coxinhas. Raras vezes isto acontecia, mas de vez em quando acontecia. 
         Às vezes, a tarde, convidávamos minha irmã Silvinha e meu sobrinho John Lennon para tomar café com coxinhas em casa, ficávamos muito feliz com a presença da minha irmã na nossa humilde casa, inesquecíveis aqueles momentos.
         Muitas passagens aconteceram, umas tristes outras alegres e aprendemos uma lição maravilhosa que jamais passaremos fome neste País, desde que estejamos propensos a “meter a mão na massa”, suar a camisa e queimar a barriga no fogão. Conseguimos sobreviver! Vai uma coxinha aí?

23 de jun. de 2011

BUCHA FRITA


BUCHA FRITA

Lá pelo final do ano de 2.002, morava num “cortiço” em Guarulhos, mas era um cortiço muito elegante, bem organizadinho. Acabei caindo por lá sem querer. Trabalhava num Instituto de pesquisa, como pesquisador e morava na casa da minha tia Terezinha e quando cheguei na casa desta minha tia ela foi bem enfática em dizer: Após Hum ano de residência por aqui você tem que cair fora, arrumar outro lugar. Passados os doze meses ela disse-me: E aí querido sobrinho já arrumou um novo lar? Este que você está venceu o contratado...Um abraço! Entrei em desespero e o primeiro buraco habitável que encontrei e entrei.  Uma chuva fininha acompanhava-me numa caminhonete do vizinho que além de alguns bons livros, um colchão velho e uma mesinha para escrever pífias crônicas jamais lidas por ninguém. Deixou-me na porta do cortiço, desejou-me boa sorte e saiu em disparada. Sentei-me no colchão, embaixo daquela chuva fininha e não sabia se chorava ou lia alguns dos livros de Dostoievski, tipo Humilhados e ofendidos ou memórias do subsolo, qualquer dos dois seriam ótimos diante da situação daquele momento. Optei em resignar-me, abaixar a cabeça e descer as escadas com aquele colchão velho e uma caixa cheia de livros, alguns já lidos outros ainda dentro do envelope. Apreensão e estado total de alerta fazia-me sentir-me um cão acuado dentro de um cubículo de quatro metros quadrados. Armei a cama, a pequena mesinha, dispus os livros sobre ela e saí para comprar um lanche e beber uma pinga para esquecer tanto sofrimento em tão pouco espaço de tempo. Cheguei e pensei estar noutro ambiente, pois o som saia de um dos quartos, era um Rap  sendo tocado enfatizando o estado social do povo brasileiro. Medo era pouco o que sentia naquele momento, até que escutei uma voz familiar, enchi-me de coragem etílica e saí para dar um grande abraço num primo que fazia anos que não o via. Sentí-me um pouco mais aliviado. Fui apresentado para outros rapazes e fui deitar com a alma mais leve.
     Tudo estava correndo absolutamente normal, levantava-me bem cedo, arrumava-me e ia comer no restaurante de Hum real, fazia algumas pesquisas e regressava para meu minúsculo quarto ao anoitecer e alcolizava-me diariamente.
     Passados alguns meses que estava morando no cortiço, telefonei para meu irmão Robson, morador na Vila Maria Alta e convidei-o para fazermos um peixe frito, regados a inúmeras cervejas, ele prontificou-se a levar as cervejas. Lembro-me perfeitamente que fui até um grande atacadista e comprei uma enorme tainha e deixei-a sob a pia e fiquei pacientemente esperando meu irmão chegar com as cervejas, não demorou muito ele apareceu com várias caixas de cervejas e pediu para colocarmos na geladeira, ir temperando o peixe que iria trabalhar e voltaria pra saborear o peixe e as cervejas. Fiquei esperando ele até às treze horas e nada de aparecer, então comecei a limpar o peixe e beber cervejas, eu e o primo Levi, lá pelas 3 da tarde já estávamos bêbados, pois tínhamos bebidos várias caipirinhas também e comecei a limpar o peixe. Papo vai e papo vem, limpei todo o peixe, lavei-o e coloquei os pedaços numa tigela, empanei e comecei a fritar. Meu primo Levi começou a reclamar de um cheiro muito forte de plástico queimado e eu dizia: Também com tantas indústrias aqui em Guarulhos poluindo nosso ar, tem mais é que cheirar plástico queimado mesmo! Fritei todos os pedaços de peixe e convidei outro colega chamado Arilson para participar da degustação da tainha. Cervejas eram bebidas e pedaços de peixe eram comidos, até que meu primo cutucou um pedaço de peixe, levantou-o, deu uma mordida e começou a rir alegremente. Perguntei a ele qual o motivo de tanta risada, ele simplesmente disse: Pô primo, já comi de quase tudo nesta vida, mas bucha frita é a primeira vez! Peguei o pedaço de bucha frita, analisei com aquele ar de entendido em polímeros de grande indústria química e disse: Pois é primo, desculpe-me, acabei empanando a buchinha de lavar louça junto com os pedaços de peixes e fritei-a..Mas ...Rimos largamente e abraçamo-nos pelo desequilíbrio etílico. Grande momento, inesquecível! Bucha frita! Horrível! Aca!

22 de jun. de 2011

Convite

Convite 

Eis a chave do meu coração, pode entrar que a casa é toda sua, não repare na bagunça, é resquício do meu último relacionamento. Veja como as paredes estão marcadas com sentimentos de saudades. Neste mesmo espaço, sob uma imensa escuridão já aconteceu grandes festas, festas iluminadas com sentimentos de alegria e paixão que às vezes ficava um longo período iluminado e os olhos transmitiam toda esta emoção. Houve um período que ninguém entrava, embora algumas pessoas pedissem autorização. Ele estava magoado com as vicissitudes do cotidiano, estava de luto. Hoje está resplandecente com uma nova alegria que iluminou tudo e toda a minha vida: O nascimento da minha netinha, chamada Mellyssa. Felicidade existe sim!

21 de jun. de 2011

Filho de Comunista

Quantas e quantas vezes fui proibido de falar da nossa miserável "vidinha". Desde moleque era proibido fazer qualquer alusão ao nosso cotidiano. Entrar calado e sair mudo, esta era a ordem de papai. Não converse com ninguém, não olhe pra ninguém, vá e volte em poucos minutos! Não entendia absolutamente nada do que estava acontecendo ao nosso redor, com a nossa família. Quantas reuniões sigilosas aconteciam em casa sob meu olhar curioso de criança. Posicionava-me entre aqueles homens que dialogavam continuamente e jogavam baralho e fumavam muito e às vezes a discussão ficava um pouco mais acirrada e alguns chegavam a dar alguns murros na mesa. Corria deitar com mamãe e ficava perguntando um pouco amedrontado se aqueles homens poderiam brigar. Mamãe acariciava-me e dizia que estavam apenas conversando sobre trabalho. As reuniões terminavam sempre muito tarde, isto quando não amanheciam conversando sobre isto e aquilo, citavam muito uma palavra que até hoje guardo na minha mente, chamava-se "Tupamaro", MR-8, Luiz Carlos Prestes, Lamarca e outros que não me lembro mais, sempre citando países como Rússia e China..às vezes faziam-se calados e eu imaginava que eles estavam brincando de "vaca amarela". Pura tolice e ingenualidade de criança. Alguns fatos marcaram profundamente minha infância, como um dia em que papai iria participar de uma grande paralisação de uma fábrica ao qual o sindicato ao qual papai era filiado tinha dado ordens pra todos os trabalhadores paralisaram suas atividades. Levantou-se muito cedo e preparava-se como se fosse para guerra, mas o que mais me chamou atenção foi a grande quantidade de bolinhas de gude que ele iria levar. Pensei, caramba, quanta bolinha de gude! Será que eles vão participar de algum torneio? Pô, e ele não vai dar nenhuma pra mim? Partiu, depois de dar um beijo carinhoso em mamãe. Muito tempo depois soube o porquê de tanta bolinha de gude. Outro fato foi que muito antes de sindicalizar-se levava um livro dentro de uma grande marmita e constantemente estava lendo,lendo, lendo e eu ficava imaginando que talvez ele não estivesse entendendo absolutamente nada do livro "O Capital" de Karl Marx. mas...E assim íamos levando nossa vida de "esconde- esconde". Lutava-se por um País de igualdades, sem pobres, sem ricos. Utopia? Talvez.
Só sei dizer que sofremos muito, muito, muito e todo o meu caráter formou-se baseado nestes fatos e situações maravilhosas. Graças a Deus nunca roubei nada de ninguém, respeitava e ainda respeito todos e sempre reparto meu "pífio" pedaço de pão com o desgraçado e com o rico. Sempre tive vontade de escrever algo como estou escrevendo, mas sempre ficava com medo de ser advertido, não compreendido, hoje com 56 anos de idade criei um pouco, talvez 1% da que aqueles camaradas tinham e resolvi escrever. Fiz mal, fiz bem? O que papai falaria se lesse este texto? Talvez, parasse e refletisse um pouco e falaria: Filho, eu disse pra você que não era pra dizer nada pra ninguém! Pediria perdão e falaria: Pô papai, releve isto, estou apenas contribuindo com a história e sua bisneta ficará muito feliz em saber que o Senhor foi um bravo que tentou ajudar este País...mas....continuamos nossa vidinha. 

17 de jun. de 2011

Curso de Admissão


     Em 1.966 conclui o curso primário e para entrar no ginásio era necessário fazer uma preparação que chamava-se admissão. Tinha apenas  onze anos de idade morava num bairro chamado Ponte Rasa, Zona Leste da cidade de São Paulo. 
      Eu era um ótimo aluno durante o curso primário o que levou papai a crer que eu poderia ser um excelente aluno durante os anos posteriores. Papai decidiu matricular-me num curso de admissão existente no bairro Ermelino Matarazzo. Eu estudava no período da tarde e no começo do curso assistia as aulas regularmente, mas com o passar dos dias fiz algumas "amizades" na sala de aula com alguns alunos e eles convidaram-me para "cabular" as aulas e irmos nadar uma grande  lagoa chamada Cisper.
      Inicialmente recusei o convite, pois sabia que meus pais mais cedo ou mais tarde descobriria, mas com o passar dos dias resolvi experimentar a grande aventura, que mais tarde iria arrepender-me pelo resto da minha existência. Nós nos encontrávamos a um quarteirão da escola e íamos alegres para a lagoa. Chegando na lagoa entrávamos na água para tomar nosso banho e refrescar-se das tardes quentes e ficávamos brincando de luta livre. Passados as horas retornávamos para casa e dizia para nossos pais que a aula tinha sido muito interessante, pois a professora tinha feito uma palestra sobre plantas e não tinha dado matéria nenhuma.
       A ingenuidade de mamãe não permitia observar que eu tinha "cabulado"a aula. O tempo foi passando e às vezes a gente cabulava as aulas para refrescar-se na lagoa. Um "colega" tinha até providenciado um carimbo de "presente" para poder carimbar nossas carteirinhas escolar nos dias de ausência.
       Lá pelo mês de Outubro, papai começou a ficar muito desconfiado, pois eram folhas e mais folhas do caderno em branco e resolveu ir até à escola saber o que estava acontecendo. Acabou descobrindo que eu não ia à escola já fazia um bom tempo; agradeceu o diretor e pediu para o mesmo desligar-me da escola. Chegou em casa e anunciou minuciosamente para mamãe todo o ocorrido. Após levar uma surra inesquecível com duas varas de marmelo trançadas, resolveram aplicar-me um castigo. Colocaram-me com várias senhoras beatas para eu estudar "o catecismo". Eu rezava dia e noite sem parar, preparando-me para fazer a primeira comunhão e redimir-me do meu pecado em ter cabulado várias aulas e gasto o suado dinheiro de papai.
       Foram semanas de rezas sob a supervisão acirrada de mamãe e existia dias em que eu chorava baixinho por ter que rezar mais de cem Pai Nosso e Ave Maria. Estava definitivamente  arrependido, mas o pior ainda estava por vir e após longas horas de orações papai anunciou enfaticamente que jamais durante a sua existência iria pagar escola pra mim, se eu quisesse estudar teria que manter meus estudos com o suor do meu rosto e disse rispidamente que eu iria começar na manhã seguinte a trabalhar com ele, numa fábrica de consertos de instrumentos musicais.
       No primeiro dia de serviço achei muito divertido, pois tinha que acordar de madrugada, preparar a marmita e sair apressado para pegar o trem na estação de Ermelino. Como eu era muito pequeno, assim que o trem chegava na estação era uma correria danada para entrar no vagão e lá estava eu no meio de tantos trabalhadores, transpirando e e silenciosos. Ao meio-dia tínhamos que esquentar nossas marmitas numa "espiriteira", que era uma lata de sardinha com álcool e comer a marmita calado e voltar para lustrar enormes instrumentos de sopro sob uma espessa camada de fuligem. Uma semana foi suficiente para eu contrair uma diarreia que não esqueço até hoje, tive que ir ao Hospital e papai e o médico resolveram suspender o castigo.
        Com apenas doze anos de idade já sentia o peso da responsabilidade em ter que arrumar qualquer serviço para pagar o curso de admissão. Foram alguns dias procurando um serviço e acabei encontrando numa "fabriquinha" de cintos, como ajudante geral, fiquei muito feliz, afinal teria como pagar meu curso. Quando fui contratado deixei bem claro para o Sr.Francisco, o proprietário que só poderia trabalhar no período da manhã, pois a tarde necessitava estudar, ele não fez nenhuma objeção, apenas iria pagar a metade do salário. Aceitei o emprego e comecei a trabalhar e foram os seis meses mais sofridos da minha vida, pois tinha que acordar cedo, ir trabalhar, voltar apressado para casa de bicicleta, arrumar-me e ir para o curso de admissão.
         Terminou o ano e fiz uma prova no Ginásio Álvares de Azevedo, em Itaquera e fui aprovado e comecei a fazer o curso ginasial à noite e trabalhava na fábrica de cintos durante o dia. Senti a responsabilidade, aprendi a dar muito valor no meu serviço e comecei a pensar muito antes de "cabular" a aula para ir ao cinema com as namoradinhas.
         Agradeço do fundo do coração aquele castigo que papai impôs e até hoje serve-me de lição para não enganar ninguém e dar muito valor nas ajudas alheias, pago com sofrimento e guardado na minha memória até que Deus chame-me e solicite a descrição detalhada do ocorrido. Não haverá sofrimento, apenas algumas lágrimas brotarão dos meus olhos e direi: Valeu a Pena!...Obrigado Papai, Obrigado mamãe por tornar-me homem desde a mais tenra idade!

15 de jun. de 2011

O Relógio Cuco

     Existem alguns objetos da nossa casa que marcam profundamente nossa vida. O objeto que marcou minha vida foi um relógio cuco que papai ganhou de um velho amigo chamado Sr.Heitor.Lembro-me perfeitamente quando papai ganhou o relógio cuco. Todos finais de semana papai e o Sr.Heitor jogavam baralho, um jogo chamado Presidente. O jogo era silencioso e para quebrar a monotonia do silêncio começaram uma acirrada discussão sobre política e eram constantes as divergências de opiniões. Após o término de uma partida de baralho o Sr.Heitor levantou-se da poltrona irritado, pois tinha perdido a mesma e caminhou nervosamente até a cozinha e trouxe uma caixa de papelão e entregou para papai. A caixa foi colocada sobre a mesa, sob nossos olhares perscrutadores de crianças e papai começou a abrí-la cuidadosamente, pois pensava tratar-se de mais uma brincadeira do Sr.Heitor e quando viu que era uma relógio cuco, seus olhos marejaram e ele não conteve-se de felicidade e deu um forte abraço demorado no Sr.Heitor. Todas as peças do relógio foram retiradas cuidadosamente da caixa de papelão e colocadas sobre a mesa.
      O relógio era construído com madeira maciça e tinha vários entalhes artísticos e era envernizado, o pêndulo, a corrente e o peso eram cromados, os números eram em algarismo romano com um pequeno cristal colocado sobre os algarismos; os ponteiros que marcavam as horas e os minutos eram dourados e brilhantes.
       O relógio que papai ganhou era muito bonito e tinha sido fabricado na Inglaterra, um selo de garantia colocado na parte de trás denunciava sua origem. Papai e Sr.Heitor começaram a montar o relógio e transcorridos alguns minutos o mesmo já estava totalmente montado.
       Um enorme prego foi fixado na parede da sala e cuidadosamente nivelaram o relógio, acertaram os ponteiros com o horário vigente e papai puxou vagarosamente a corrente para baixo para dar corda e após alguns segundos começamos a ouvir os primeiros tic-tacs. Fomos advertidos por papai que jamais deveríamos dar corda no relógio, pois  ele ficaria encarregado desta delicada tarefa, ele estava precavendo-se das nossas mãozinhas destruidoras.
      Após ouvir atentamente as orientações de papai, sentamos no chão, embaixo do relógio e ficamos aguardando pacientemente o passarinho aparecer. O tic-tac constante enchia toda a sala e a nossa ansiedade aumentava a cada movimento do ponteiro de minutos, o silêncio era total até o instante em que abriu-se uma portinha e saiu um lindo passarinho de madeira com peninhas milticoloridas cobrindo o corpo e pôs-se a cantar vários "cucos".
      Após o mavioso canto o passarinho recolheu-se, a portinha fechou-se e saudamos o mais novo amiguinho do nosso lar com palmas e alguns gritinhos estridentes das minhas irmãzinhas.
       Os segundos, os minutos, as horas e os dias foram passando, passando e o relógio cuco já fazia parte da família, da nossa vida.
        Semestralmente o relógio cuco era retirado da parede e colocado sobre a mesa e papai desmontava-o para executar uma limpeza e lubrificação do mesmo. Neste dia fazíamos uma verdadeira festa, ficávamos em volta da mesa admirando as mãos hábeis de papai manuseando minúsculas peças, jogando um pouco de óleo numa determinada peça, assoprando uma outra peça, mas sempre de olho na gente, pois nossa paixão pelo passarinho era muito grande e sempre queríamos tocá-lo e admirar o mesmo, saber como poderia cantar alegremente de hora em hora, sendo de madeira. Para saciar nossa curiosidade pueril, papai deixava a gente segurar o passarinho por alguns segundos. Após delicada limpeza e lubrificação, o relógio era recolocado na parede e após dar corda o tic-tac era audível.
        Era o relógio cuco que avisava mamãe quando ela tinha que dar algumas colheradas de um fortificante chamado "Emulsão Scoth", tal fortificante tinha um sabor horrível e várias vezes torcia para o relógio cuco parar para evitar tal sofrimento, mas sabia que era quase que impossível, devido a meticulosa limpeza e lubrificação do mesmo. Nessa hora eu odiava o relógio cuco e cheguei mesmo a praguejar o inocente passarinho.
         O agradável aroma de café sendo coado, esparramava um delicioso odor pela casa e coincidia com o ponteiro menor no algarismo seis e o ponteiro maior no algarismo doze. Eram seis horas da manhã e o passarinho cantava seis cucos e papai levantava-se para ir ao trabalho. Foi assim que comecei a aprender as horas, pelas constantes coincidências dos fatos do cotidiano e a quantidade de cucos ouvidos
         Nos dias chuvosos em que mamãe proibia-nos de sair de casa, após brincar com todos os brinquedos de casa, eu improvisava uma balança com o relógio cuco. Atravessava minhas raquíticas pernas sobre o pêndulo que ficava na extremidade da corrente e balançava alegremente, sempre de olho em todas as direções para não ser surpreendido por mamãe e evitar uma surra de vara de marmelo. Foram várias balançadas e nunca fui surpreendido até o dia em o relógio cuco desabou sobre minha cabeça e fui parar no hospital e quando souberam que tinha sido o relógio cuco o agressor da minha mente, as enfermeiras e o médico desabaram em risos enquanto davam alguns pontos na minha cabeça.
         Os cucos acompanharam-me desde as primeiras letras aprendidas na cartilha Caminho Suave, curso de  Admissão, ginásio e uma parte do primeiro ano do colegial. Era o relógio que controlava meu tempo de estudos e durante as minhas hesitações, dúvidas, das primeiras palavras aos problemas de Física, Matemática, Química e outras disciplinas era para o relógio cuco que eu diria meu olhar como que suplicando alguma ajuda até que repentinamente as respostas surgiam em minha mente como por encanto.
          Foi o relógio cuco que acordou-me no primeiro dia de trabalho como office-boy numa Cia.de Seguros, assinalou o horário que devia encontrar coma a minha primeira namorada e denunciava-me quando chegava atrasado em casa.
          Saí de casa aos dezessete anos de idade para ir estudar no interior de São Paulo, despedi-me de todos e assoprei um carinhoso beijo para o relógio e fiquei pensando que ele nunca mais iria controlar a minha vida. 
          Quando regressei para casa após alguns meses não encontrei mais o relógio cuco na parede da sala, perguntei a todos sobre o seu paredeiro e disseram que o relógio tinha quebrado e tinham doado o mesmo para um carroceiro que passava constantemente na rua onde morávamos.
          Olhei para a parede onde o mesmo ficava e restava apenas a marca com seu formato, abaixei a cabeça tristemente e ouvi alguns tic-tacs produzidos pela minha  imaginação e a partir daquele momento passei a sentir uma saudade imensa daquele querido amigo que acompanhou-me da infância até a juventude com seu constante tic-tac sem parar.
           Controlou meus risos, minhas lágrimas, minhas alegrias e minhas tristezas, foi amigo e em alguns momentos foi meu algoz, mas estava sempre dentro do meu coração, até hoje.Talvez ainda eu encontre-o num ferro velho da periferia da cidade de São Paulo! Seria muita Felicidade...mas deixa pra lá, continuamos com os tic-tacs da vida..
            
           

14 de jun. de 2011

As "peladas"do Pátio do Colégio

       Em 1.971 trabalhava como office-boy numa companhia de seguros na Praça Padre Manoel da Nóbrega, perto da Praça da Sé, no centro de São Paulo. Na hora do almoço, após saborear a excelente refeição preparada com muito esmero por Dona Maria, que era a cozinheira da Cia. onde eu trabalhava, nós office-boys descíamos do vigésimo primeiro andar para dar umas voltas e apreciar o que existia de melhor  naquela época: " A beleza da mulher paulistana".
       Ficávamos sentados num banco existente no pátio do Colégio apreciando todas as meninas que passavam apressadas, vindo não sei de onde e indo para um lugar ignorado por nós, talvez algum banco, loja. Num determinado dia o Artur levou uma bola de futebol carcomida e propôs fazermos uma "pelada" no Pátio do Colégio, inicialmente ficamos um tanto apreensivos, eu os colegas achávamos que poderíamos ser presos, mas aceitamos e dividimos-nos em dois grupos e começamos a dar os primeiros chutes na velha bola de futebol.
        Com o passar dos dias, a "pelada" foi chamando atenção de outros office-boys que passavam apressadamente pelo pátio e pediam para participar, nem que fosse só um pouquinho e todos eram aceitos, a única restrição que fazíamos era que tinha que ser office-boy. Após algumas semanas surrando a bola, sempre no horário do almoço, nossa "pelada" já era conhecida por alguns transeuntes e uma pequena e ruidosa torcida composta de camelôs, engraxates, mendigos e alguns vagabundos que perambulavam pela redondeza que paravam para observar aquele bando de moleques sem juízo correndo em pleno centro da maior cidade da América Latina.
         Dois garotos tiravam "par ou ímpar" e começavam a escolher os "craques" que iriam compor o time, geralmente os garotos com porte físico avantajado tinham a preferência e rapidamente eram os primeiros a serem escolhidos, ficando os "miudinhos" e raquíticos para serem escolhidos no final ou aceitavam o ingrato convite para ser gandula.
         O jogo de futebol era muito divertido, pois tudo era improvisado, desde as traves que poderia ser dois pedaços de pedras subtraídas da construção do metrô da Praça da Sé, que estava sendo construido ou uma maleta 007 de algum office-boy ou mesmo um saco de roupas sujas de qualquer mendigo torcedor.
         Inicialmente não existia juiz, mas com o passar dos dias e aumentando o número de jogadores, aceitamos a sugestão de alguns torcedores e resolvemos "escalar" um juiz. O mais difícil era convencer um garoto office-boy a aceitar ser juiz,. cargo tão decisivo e perigoso, visto que qualquer desentendimento era fácil observar o juiz levando alguns cascudos, pegar sua maleta 007 e sair xingando a todos e ir embora; outro dia voltava, mas não aceitava ser juiz de jeito algum.
         Em toda partida de futebol, escolhe-se o melhor jogador em campo, na nossa "pelada" os torcedores escolhiam o pior jogador do Pátio e era dificílimo a escolha, pois um era pior que o outro, éramos verdadeiros "pernas de pau", mas sempre existia o piorzinho de todos e não envergonho-me de ter sido escolhido algumas vezes, poucas vezes, mas.... Esse garoto que era escolhido " o pior" era zombado em plena rua aos gritos por outros office-boys e mesmo dentro de algum banco da Rua XV de Novembro, enquanto aguardava pacientemente na quilométrica fila podia ouvir-se " E aí pior!". Quando tinha sido escolhido, nem ligava, fazia de conta que não era comigo, mas que dava um "odiozinho" dava.
          Aconteceu uma partida inesquecível em que participaram quarenta e quatro office-boys, vinte e dois de cada lado, acho que todos os office-boys dos escritórios da redondeza estavam lá naquele dia, tinha mais jogadores que torcedores no Pátio,infelizmente neste dia a partida foi interrompida por policiais de trânsito, que vendo aquele bando de garotos atrás de uma bola resolveram parar para observar o que estava acontecendo. Paralisaram nossa partida de futebol e tentamos explicar que era apenas uma "pelada", que não estávamos prejudicando ninguém, a não ser algumas boladas que alguns transeuntes levavam, é claro, que a gente era trabalhador (office-boys), etc, etc. Não houve jeito, confiscaram nossa bola e pediram delicadamente para que voltássemos para nossos escritórios.
           Mas a gente não se  preocupava, pois no outro dia outro colega trazia outra bola e lá  estávamos nós correndo pra lá e pra cá novamente, mas sempre de olho nos policiais de trânsito.
            Estava chegando o final do ano e resolvemos promover um mini campeonato entre nós office-boys dos escritórios da região e decidimos que o mesmo seria realizado em pleno Pátio do Colégio e somente office-boys poderiam participar. Ficou estabelecido entre nós que o campeão ganharia um troféu, uma quantia em dinheiro e seria necessário os times ter camisetas próprias com o nome do escritório. Quando o campeonato começou era muito lindo ver a molecada abandonada dentro de lindas camisetas ostentando o nome do escritório, soubemos mais tarde que até alguns supervisores e gerentes de escritórios patrocimaram algumas camisetas, mas pediam para não serem identificados, pois poderiam ser demitidos pela ilegalidade do campeonato e pelo local ser um espaço público. 
            Faltando alguns dias para o dia do Natal já estava definido os dois times finalistas,os jogos aconteceram em duas semanas, após várias partidas acirradas, no estilo "perdeu, cai fora", o tradicional "mata-mata".  Os dois times finalistas eram o nosso e de um outro escritório pertencente a um banco da rua Boa Vista.
golaço, mandando a bola na Rua General Carneiro, quase acertando a cabeça de um camelô. No segundo tempo novamente o Artur nos presenteou com outro gol maravilhoso. Resultado final, ganhamos  a partida por 2x0. Éramos Campeão! Abraços misturavam-se com gritos de: É Campeão!
            Atravessamos a Rua XV de Novembro aos gritos de "É Campeão!" e fomos comemorar nossa vitória comendo sanduiches de linguiça calabresa com guraraná na Tua do Tesouro. 
             Lá estava nosso troféu em cima do balcão de vidro e a cada mordida em que eu dava no meu sanduiche, olhava para o troféu com um orgulho danado em ter sido Campeão. Campeão da "pelada" do Pátio do Colégio.

Circo na periferia da cidade de São Paulo

            O que poderia existir de mais belo que a chegada de um circo na periferia da cidade de  São Paulo na década de 70? Absolutamente nada era mais belo e emocionante para nós adolescentes moradores no querido bairro Cidade A.E.Carvalho, zona leste da cidade de São Paulo.
             Quando aquelas carretas enormes e multicoloridas passavam na Av.Campanelas e estacionavam em frente à Praça Ana das Dores, "a pracinha", nossos corações disparavam de alegria e os corações de nossas mães disparavam de aflição, pois sabiam que seria quase que impossível segurar seus filhos em casa.
             A molecada chegava sorrateiramente, perscrutando o local e os trabalhadores braçal com perguntas tolas, tais como: Como é o nome do circo? Quando irá estrear? Tem bichos? Qual é o nome do palhaço?
Os trabalhadores bem mal humorados e suando muito restringiam-se a dar respostas curtas, sempre tirando enormes tábuas dos caminhões, empurrando ferros, esticando lonas, sem parar e sem olhar para cara de ninguém. E nós continuávamos "xeretando" aqui e ali e lá estavam os artistas dentro de um enorme trailler lanchando tranquilamente e rindo alto, denunciando que estavam muito feliz. Os dias iam passando e o circo ia sendo montado, dia e noite de trabalho e após dois ou três dias o mesmo já estava montado. Lindo, majestoso, imponente! mudando toda a paisagem da pracinha.
              E eis que chega o grande dia da estreia e nota-se uma enorme placa com os dizeres: Grande estreia! Domingo às 15hs o circo Cigano convida você e sua família para assistir o maior espetáculo da Terra! Acontecia duas sessões, às 15hs e às 20hs e sempre íamos nas duas sessões, sendo que na segunda sempre levávamos nossas namoradinhas.
              Alguns alto-falantes eram esparramados pelo lado externo do circo e tocavam várias músicas orquestradas, Carlos Gonzaga com uma música chamada Diana e várias músicas de  Roberto Carlos. Entre pipoqueiros, vendedores de algodão doce esparramava-se nossa Felicidade.
               Segurando a mão da minha namoradinha comprava os ingressos e um enorme saco de pipocas e entrávamos vagarosamente, prestando atenção em tudo e em todos. Sentávamos na arquibancada feita de madeiras, bem lá no alto e ficávamos aguardando ansiosamente o inicio do espetáculo.
               Várias crianças corriam pra lá e pra cá e várias gargalhadas eram ouvidas dentro do camarim. Repentinamente a música cessava, abria-se as cortinas e entrava o apresentador trajando um "flaker" preto e com uma voz rouca anunciava-se o início do espetáculo, sempre agradecendo nossa presença.
               O apresentador saia do palco, anunciando dois palhaços que entravam dando piruetas e muito tapas, caiam e levantavam-se constantemente, levando o público ao delírio de tanto rir.
               Aplausos e mais aplausos misturavam-se com gargalhadas e alguns assobios. Nossos corações ficavam disparados quando as trapezistas começavam a subir uma escada feita de corda, o silêncio era total até que elas posicionavam-se lá no topo e começavam-se a balançar sem parar até que uma delas lançava-se no ar indo segurar a mão da outra. Sentia as mãos da minha namoradinha toda trêmula e suadas, encostávamos nossos corpos em sinal de apreensão e medo, batíamos palmas nervosamente e ficávamos aliviados quando tudo terminava. E novamente lá estavam os palhaços estapeando-se e risos e gargalhadas ecoavam ao longo do circo. O espetáculo não durava mais que duas horas, mas para nós parecia que eram apenas alguns minutos.Ficávamos muito tristes quando os artistas despediam-se curvando-se elegantemente para agradecer sob muitos aplausos e assobios.
                Fechavam-se as cortinas e nossos corações ficavam pequenininhos, era hora de voltar para casa comentando as principais atrações e combinando voltar no próximo final de semana para assistir o maior espetáculo da Terra. O circo, o circo da Periferia
               

11 de jun. de 2011

Festa Junina.

     A missa de domingo terminava e o padre anunciava que iria começar os preparativos para a tradicional quermesse que acontecia no mês de Junho para homenagear os três santos: Santo Antônio, São João e São Pedro. Nós garotos ficávamos muito feliz, pois enquanto o padre pensava em arrecadar alguns trocados para a paróquia, nós poderíamos participar da festa em toda sua plenitude e se desse sorte até conhecer novas garotas.
     Éramos os primeiros a dar o nome para participar como voluntários na arrumação das barracas de guloseimas. Tudo era uma grande diversão e aproveitávamos nosso encontro para colocar nossas pífias conversas em dia e mais falávamos do que trabalhávamos e constantemente levávamos "um pito" ( uma advertência) do padre que pedia mais empenho, mais seriedade com relação ao serviço, pois o mesmo lembrava-nos quanto ao prazo estipulado para o início da querrmesse.
      às vezes parávamos de executar um determinado tipo de serviço para conversar com alguma menina conhecida que passava em frente da igreja vindo da feira com a sacola cheia de frutas e verduras e novamente éramos presenteados com uma enérgica bronca do padre, sempre vigilante e presente, entre um beijinho no rosto da menina e um tchauzinho sempre de olho no rosto enfurecido do padre, voltávamos ao serviço, sempre sorridentes.
       No segundo final de semana do mês todas as barracas já estavam montadas e supervisionadas pelo padre que fazia questão de agradecer a todos e esquecendo nossas paqueras.
       O locutor oficial da quermesse era o meu amigo Israel que embora tivesse um gosto musical duvidoso e de muito mal gosto era muito querido e conhecido de todos. Nessa época eu trabalhava numa fábrica de cintos no bairro de Artur Alvim e cursava o primeiro ano do ginásio no Álvares de Azevedo em Itaquera, à noite.Todos os dias meu amigo Israel ia levar uma marmita no almoço que era preparada com muito esmero por mamãe. Dividia meu insignificante salário com o meu amigo Israel e mamãe e o que sobrava guardava para ir à quermesse nos finais de semana.
        No primeiro dia da quermesse eu fazia questão de ir com minha melhor roupa e nesse dia era um dia todo especial. Vestia minha calça boca de sino, que era o estilo da época, era uma calça azul escuro com listras brancas e cintura alta até o estômago, camisa de seda branca, mangas compridas, bem larga e que tinha custado quase um salário mensal. Lustrava os sapatos que tinha um salto enorme chamado de "carrapeta" e colocava um cinto fabricado por mim e tinha uma fivela enorme. Pronto, sentia-me um verdadeiro "toureiro", repartia os cabelos cumpridos ao meio, colocava um perfume comprado na lojinha da dona Matilde e saia erecto em direção a tão aguardada quermesse da igreja.
        Chegava na quermesse e era recebido com alguns assobios dos amigos Israel e Luisão, que eram irmãos, chamando-me de "lindo!, lindo!"Ficava envergonhado e meu rosto ficava mais vermelho do que já era, mas não importava-me e ia em direção a eles pedir para tocar uma música que eu gostava muito, chamada Rock rol lo lo by, cantada por B.J.Thomas, era sucesso na época e todos gostavam. Lá pelas oito da noite a quermesse já tinha pessoas suficiente para iniciar o tradicional bingo e sempre participávamos pagando um insignificante quantia em dinheiro e às vezes ganharmos alguns "bebelôs"de argila que eu trocava por bolinhos caipiras e quentões.Existia o "Correio Elegante" que era um bilhetinho que recebíamos de alguma paquerinha enaltecendo nosso trajar ou nossa obscura beleza de adolescente. Não só recebíamos como mandávamos também para as meninas mais belas da quermesse e nem sempre éramos correspondidos.Mas tudo era festa e nada do Mundo pagava o encanto daquele momento único e maravilhoso. E subitamente éramos interpelados por um grupo de meninas bonitas e falantes, agarrando-nos pelo braço e dizendo que estávamos presos. Lá estávamos dentro de uma cadeia feita de bambu que eu ajudara a construir e claro que  não apresentava resistência alguma diante de braços tão meigos e fazíamos questão de ficarmos presos e com um olhar de piedade pedir para as meninas libertar-nos que elas ganhariam um beijo. às vezes éramos atendidos, mas às vezes ficávamos vários minutos no cárcere,humilde e escutando a voz rouca do amigo Israel no alto-falante pedindo que alguém tivesse piedade e fosse soltar-nos. Aquilo doía na alma e assim que saia da prisão ia até o meu amigo pedir explicações e ele sorria largamente e oferecia-me outra música, dessa vez..Roberto Carlos. Anunciava os bolinhos caipiras, os quentões, a maçã do Amor, a barraca da linguiça e outras e convocavam-nos para assistir a apresentação da quadrilha que era composta de várias crianças do bairro, trajando como caipirinhas. Era divertidíssimo e muito engraçado.às 23 horas anunciava-se o final da quermesse e todos iam retirando-se  e nós ficávamos para ajudar as senhoras a recolher panelas, fogões e outros utensílios.Desligava-se o som, fechava-se as portas do salão paroquial e era hora e voltar para casa, transpirando muita felicidade e alegria e aguardar o próximo final de semana para participar da quermesse da Igreja da Cidade A.E.Carvalho.
        







   
  

10 de jun. de 2011

Bolo de Natal


Bolo de Natal

     Papai adorava ler Karl Marx e mamãe encantava-se com a leitura de Allan Kardec. Eu, aos oito anos de idade, sem entender absolutamente nada do conteúdo daqueles “estranhos” livros, relia minha cartilha escolar do curso primário, chamada Caminho Suave e alguns gibis do Zorro e do Fantasma que eram sutilmente  escondidos entre as páginas da cartilha para não serem vistos por mamãe e evitar uma boa surra de vara de marmelo.

    Na véspera do Natal de 1.963, papai saiu de casa, no pacato bairro Parada Inglesa-SP para participar de uma importante reunião no Sindicato de Brinquedos e Instrumentos Musicais, que ficava na Av.Celso Garcia, no Brás-Sp e prometeu a mamãe que voltaria para a confraternização natalina.

    No início da noite mamãe começou a fazer um bolo de morango e quando terminou, colocou o bolo cuidadosamente sobre a mesa e disse enfaticamente que só comeríamos o bolo quando papai chegasse.

    Desolado, sentei-me diante do bolo e com as mãos no queixo e os cotovelos sobre a mesa, comecei a sussurrar uma oração para Jesus pedindo o retorno de papai o mais breve possível.

    O repetitivo “tic-tac” do relógio cuco que ficava na cozinha e alguns estampidos de fogos que iluminavam o céu, anunciavam a proximidade do dia do nascimento de Jesus e deixava-me inquieto e entre uma olhada de soslaio para mamãe e outra para a porta da cozinha para ver se papai estava chegando, colocava o dedo indicador no bolo e levava-o rapidamente até a boca.

    Faltando alguns minutos para meia-noite, papai chegou com um embrulho embaixo do braço e eu iluminei toda a cozinha com um inefável sorriso de Felicidade. Iria comer o bolo!

    Papai deu-me o embrulho acompanhado de um carinhoso beijo na testa e quando eu o abri, meus olhos marejaram diante de uma linda bola de capotão número cinco com um delicioso cheiro de couro cru. Retribuí o presente com um forte abraço e vários beijos no seu rosto.

    Posicionamo-nos ao redor da mesa e demos as mãos e mamãe iniciou uma “interminável” prece agradecendo a tudo e a todos e quando terminou, abraçamo-nos desejando Feliz Natal.

     O bolo de morango com vários furinhos produzidos pelos meus ágeis dedinhos finalmente foi cortado e servido a todos.
     Adormeci num sofá velho, na varanda, todo lambuzado de bolo, abraçado a bola de capotão, escutando o suave “tic-tac” do relógio cuco e o barulho de alguns pingos de chuva que começara a cair... Era Natal!
  

Engraxate da periferia

Todos os dias era um sacrifício danado para conseguir comida para todos, afinal, éramos cinco irmãos e tínhamos uma fome de leão e papai ganhava apenas o suficiente para não passarmos fome. Eu tinha nove anos de idade e resolvi ajudar minha família no orçamento, subitamente tive uma idéia maravilhosa... Iria ser engraxate. Mas como? Não sabia nada sobre a nova atividade e não tinha dinheiro para comprar uma caixa de engraxar, resolvi pedir ajuda para o senhor Heitor, que era um velhinho ex-combatente de guerra que todas as crianças do bairro amavam. Procurei-o e contei-lhe o meu plano de ser engraxate. Ele riu muito e se propôs a me ajudar. Começamos imediatamente a construir minha ferramenta de trabalho, a caixa de engraxar. Após algumas horas, lá estava ela prontinha para ser usada.
Corri pra mostrar para papai e ele perguntou onde eu pretendia engraxar, eu disse que iria engraxar os sapatos de todos os trabalhadores da periferia e iria montar a mesma em frente de casa. Ele meneou a cabeça e sorriu, passou a mão na minha cabeça e pediu-me que fosse me deitar, pois ainda estava escuro e afinal não tinha escova nem graxa para iniciar o meu trabalho. Pedi-lhe alguns trocados e ele imediatamente deu-me algumas moedas para comprar graxa e escova. Rasguei uma calça velha da minha irmãzinha, escondido de mamãe, é claro, e, no outro dia, sob chuva, armei minha caixa de engraxar em frente de casa, fazia parte da instalação um guarda-chuva carcomido pelo tempo e uma velha cadeira.
Esperei o primeiro freguês e as horas foram passando. Eram trabalhadores que iam para seus trabalhos, apressados e com os sapatos cheios de barro, pois a rua em que morávamos não era asfaltada, ninguém parava, não respondiam ao meu bom-dia. Toda a manhã passou e mamãe chamou-me para ir à escola. Foi uma frustração total, mas esperaria outro dia... Foi a semana toda chovendo e eu armando e desarmando a caixa e ninguém parando para engraxar. Sábado amanheceu um dia maravilhoso e enchi-me de alegria e entusiasmo para engraxar meu primeiro para de sapatos. Nada... O Sol já estava se pondo e com ele toda a minha esperança, o coração foi ficando pequenininho, uma profunda tristeza invadiu minha alma... Estava derrotado, não consegui engraxar um único par de calçados. Entrei, coloquei minha caixa de engraxar ao lado do fogão e comecei a folhear um gibi, morrendo de vergonha de não conseguir engraxar absolutamente nada... Eis que batem palmas e minha mãe vai ao portão, um senhor perguntou sobre o menino engraxate e minha mãe chamou-me, e ele disse: Parabéns, garoto! Toda a semana montando e desmontando a caixa! Quantos sapatos você engraxou? Disse-lhe que não tinha engraxado nenhum. Abriu o porta-malas da Brasília e mostrou-me vinte e seis pares de sapatos para serem engraxados. Não me contive e deixei correr algumas lágrimas sobre o meu rosto, de felicidade, de alegria, de persistência. Até hoje me lembro com muita ternura dessa passagem da minha vida.

Pastéis de feira da periferia.

O verdadeiro pastel de feira é o pastel de feira da periferia. Para comer um pastel de feira da periferia existe todo um ritual: há a necessidade, quase que uma obrigação, de ir acompanhado da “patroa”, entenda-se como esposa, companheira, amante ou mesmo a namorada. Mas tem que ir acompanhado(a) para que o prazer da degustação seja a dois.
Pode-se comer o pastel de feira logo quando se chega à feira ou ao terminar as compras, geralmente sempre pechinchando em outras bancas que é pra comer sempre mais um.
Pede-se licença, estaciona-se o carrinho de feira próximo à banca, que dependendo da hora já deve estar lotada de carrinhos. Se der muita sorte pode sentar num dos banquinhos carcomidos, que são reservados para os velhinhos e velhinhas, mas depois do meio-dia a chances são bem remotas de encontrar algum vazio.
Dependendo da periferia, o pessoal está todo uniformizado e consta até o nome da banca. E lá no fundo está um homem com os olhos puxadinhos, denunciando que é oriundo do Oriente, sempre sorridente e jamais desgrudando da escumadeira, sempre apontando aqui e alí para anunciar um freguês mais faminto e/ou apressado.
Em todas as feiras da periferia existem uma ou mais bancas de caldo de cana, a gostosa garapa, que geralmente fica ao lado da banca de pastel. Acredito que deva existir até uma parceria entre as duas bancas, mas até agora ninguém provou isso, então deixamos pra lá e vamos pedir os pastéis.
Entre várias pessoas, ergue-se o dedo indicador e pede-se com um rosto aflito: Um pastel de carne e um de frango com catupiri! Geralmente enquanto o Oriental frita os pastéis pede-se a garapa, que invariavelmente o dono pergunta se quer com limão ao abacaxi. O barulho do motor é ensurdecedor, mas o caldo é delicioso.
Nas manhãs de sábado, na Vila Maria Alta ou nas manhãs de domingo em Itaquera dava vontade de pedir “garapa com engove”, tamanha a ressaca do porre da noite anterior.
Quando os pastéis estão fritos jamais esquecer de colocar aquele tradicional vinagrete que pela sua aparência denota um sabor indiscutível e uma fatia de limão acompanha muito bem se for de carne o pastel.
Pastéis comidos e garapas bebidas, pede-se para embrulhar mais alguns pra ir comendo enquanto a “patroa” prepara o almoço de sábado ou domingo, que geralmente são mais demorados. Pode-se também levar a massa do pastel pra fazer alguns para serem comidos com uma boa cerveja gelada à noite.
Saciado, cheio e feliz paga-se e despede-se prometendo voltar na semana seguinte. Novamente pede-se licença para tirar o carrinho de feira e retorna-se para casa empurrando ou puxando o carrinho abarrotado de frutas e hortaliças dependuradas por toda a parte e tomando o maior cuidado para não amassar a “massinha”. Então é só aguardar mais uma semana para comer os tão deliciosos pastéis de feira da periferia.

9 de jun. de 2011

Pipas no ar nas manhãs de sábados

Em 1970, éramos adolescentes e morávamos no bairro da Cidade A. E. Carvalho e o nosso passatempo favorito era confeccionar e empinar pipas nas manhãs de sábados.
Nosso encontro acontecia nas manhãs de sábados na área de entrada da casa do meu amigo Israel.
O ritual alegre era acompanhado pela garotada da periferia que tentava descobrir como fazer belas e multicoloridas pipas.
Tudo era feito com muita descontração e alegria, desde o preparo da cola feita com farinha de trigo que eu levava de casa e que exigia muito esmero para não sujar o belíssimo fogão da dona Ondina, mãe do meu colega Israel.
As folhas de papel de seda eram adquiridas na lojinha da dona Matilde, escolhidas cuidadosamente entre as diversas cores dispostas na prateleira.
Existia um momento que exigia grande concentração, era quando começávamos a “afinar” as varetas que eram retiradas do bambu do varal de roupas da dona Ondina. Nesse momento, até que adquirisse destreza com a afiadíssima faca dialogávamos sobre as novas namoradinhas, os estudos no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, que localizava-se em Itaquera e sobre o serviço como Office-boy numa Cia. de Seguros no centro de São Paulo.
O grande prazer completava-se por estar ao lado do amigo que não via há uma semana e poder detalhar o perfil da nova namorada que trocávamos assim como éramos trocados freqüentemente.
Às vezes éramos obrigados a abandonar nossa área de lazer momentaneamente, pois dona Ondina queria varrer a mesma, o que ocasionava um tempo de espera encostados no velho carro Ford semi-desmontado pelo Sr. Luis, pai do meu amigo, que era mecânico. Nesse momento passava o Zé Roque, irmão do meu amigo e parava na nossa frente com algumas peças de televisão na mão, pois o mesmo tinha uma oficina de conserto no quintal, e ficava zombando da nossa capacidade de confeccionar pipas. Gargalhadas espalhadas pelo ar entrecortadas pelos raios de Sol da bela manhã de sábado completava a nossa felicidade com a chegada do Lalá que com seu tradicional assobio chamando sua namorada que era a irmã do Israel. Saia toda perfumada, sorrindo e pisando cuidadosamente sobre os pipas para não amassá-las. Abraçavam-se carinhosamente e nós abaixávamos a cabeça concentrados na confecção da nossa namorada, que era a pipa.
Constantemente olhávamos o céu azul e a nossa maior preocupação era com o vento e entre a confecção das pipas e a eterna paciência em fazer aquelas “rabiolas” quilométricas, molhávamos o dedo com saliva e expunha-o ao vento para saber qual a direção que o mesmo soprava e qual era a sua intensidade. Dessa maneira tínhamos uma vaga noção por onde nossas pipas e nossos pensamentos voariam.
O vento da periferia sempre era bondoso conosco e jamais deixava de soprar aos sábados de manhã e às vezes trazia o aroma agradabilíssimo do café coado pela dona Ondina que era servido em xícaras de porcelana pelo Lalá e sua linda namorada. Sempre sorrindo e desejando-nos bons ventos.
Talvez por não existirem prédios, o vento soprava uma agradável brisa, na quantidade exata às nossas expectativas e aos nossos sonhos de adolescente, e soprava em quase todas as direções.
Fazíamos as pipas com perfeição e elas raramente deixavam de voar.
Tínhamos uma brincadeira maravilhosa que consistia em dar nomes às nossas pipas e geralmente ganhavam nomes da última namorada e assim que o mesmo ganhava o céu ficávamos imaginando subir junto com eles e ficarmos olhando lá de cima tudo o que tinha acontecido, acontecia ou iria acontecer no nosso querido bairro Cidade A. E. Carvalho.
Havia sábados em que o vento soprava em direção ao bairro de Itaquera e nesses sábados nossos pensamentos avistavam cenas e situações indescritíveis. Lá de cima podíamos avistar a padaria com sua enorme máquina de assar frangos, pessoas saindo com saquinhos de pães, carros com o volume do rádio um pouco acima do normal tocando músicas de Roberto Carlos, Caetano Veloso, Os Beatles e Morris Albert cantando “Fellings”. Olhando atentamente poderia observar minha caixa de engraxar sapatos que outrora colocava em frente à padaria e ficava aguardando pacientemente os fregueses.
O ponto de ônibus em frente à padaria, e motoristas e cobradores sorrindo entre um gole de café, uma coxinha comida e um cigarro aceso. Pessoas entrando pela porta traseira e o ônibus saindo vagarosamente com motoristas com óculos escuros acenando aos companheiros com destino à Praça Clovis Bevilaqua. Viagem longa que nossas pipas não conseguiam acompanhar.
Observava crianças correndo alegremente, pelo pátio da escola Milton Cruzeiro durante o recreio e o ônibus Mogi-Parque D.Pedro II que passava em alta velocidade deixando-nos atônitos.
O vento mudava um pouco a direção e de lá de cima enxergava minha mãe e outras mães do bairro lavando roupas na mina e conversando sobre o sofrido cotidiano. Enquanto as roupas eram “quaradas” pelo tempo de trocar uma receita de bolo ou reclamar do custo de vida que já naquela época fazia-se presente.
Eis que a pipa e os nossos pensamentos pairavam sobre a igreja do bairro e podíamos deliciar-nos com a tradicional quermesse onde recebia as meninas com seus cabelos cortados “à chanel”, devidamente arrumados com “laquê” e trajando lindos vestidos rodados coloridos e os meninos trajando calças “boca de sino” com cintura alta, parecendo um toureiro da periferia, e suas inconfundíveis camisetas “volta ao mundo” ou “gola olímpica”.
Sentia o aroma dos bolinhos caipiras preparados pelas mães do bairro e avistava barracas coloridas, que ajudávamos a montar, que abrigavam diversos jogos e vendas de guloseimas. As meninas eram vigiadas constantemente pelas mães ou irmãos que não permitiam beijos ou abraços, o máximo era uma piscada bem longe dos olhos severos dos pais de antigamente.
O alto-falante sussurrando uma inaudível música de Nelson Ned entrecortada pela voz rouca do amigo Israel que era o locutor oficial da quermesse, anunciando o início do jogo de bingo que jamais conseguira ganhar, completava a paisagem.
O barulho estridente do trem que fazia o trajeto Brás-Mogi das Cruzes afastava os namorados que trocavam presentes na véspera do Natal.
O vento começava a parar de soprar e era hora de recolher as pipas, nossas imaginações e nossos sonhos e retornar às nossas casas, depois de um abraço e um aperto de mão. Estávamos novamente na terra e ficávamos torcendo para que a semana passasse rápido e o vento mudasse de direção para que pudéssemos nos encontrar e avistar novos lugares e acontecimentos do pacato bairro da Cidade A. E. Carvalho.
Um passado não muito distante que ganhara as alturas através da nossa criatividade e amizade sincera e que deixou muitas saudades de um tempo em que dávamos vazão a nossa imaginação de adolescente, através de uma pipa, uma pipa nas manhãs de sábados.
Esta é uma pequena homenagem ao meu amigo Israel Brienzo que faz exatamente uns trinta anos que não vejo. Soube que anda morando lá pelas “bandas” do Norte do Paraná. Abraços, amigo, e saiba que até hoje me lembro das lindas namoradas e pipas que tanto empinamos juntos.

Um Ofice-Boy na Cidade de São Paulo na década de 70

No ano de 1971, eu era um garoto que morava na periferia, tinha quatorze anos de idade, era pobre de nascimento e tinha apenas o ginásio incompleto, então não restava-me outra alternativa a não ser começar a trabalhar para levar a namoradinha ao cinema nos finais de semana e comer cachorro quente com tubaina na padaria do bairro com os amigos Israel e Luizão.
Papai levou-me até o endereço citado no minúsculo anúncio do jornal comprado no domingo, apertou o botão do elevador, desejou-me boa sorte e foi embora.
As pernas tremiam e o suor começou a descer pela testa, estava muito quente e eu muito nervoso. Desci no 21º andar, super enjoado pelo trajeto do elevador, o coração disparado e a carteira de trabalho em branco.
Apresentei-me à recepcionista um pouco trêmulo, inseguro, bastante ansioso, mas com muita esperança em conseguir a vaga e não decepcionar Papai.
Fiquei aguardando eternos minutos ao lado de jovens apreensivos, trajando roupas simples, denunciando-os que também eram moradores da periferia o que deu-me um pouco mais de tranqüilidade.
Fui chamado pela recepcionista que conduziu-me até uma sala onde existia alguns móveis estilo colonial, muitos telefones, uma enorme pintura de eucaliptos na parede e eu diante do Sr.Rubens, gerente de uma Cia.de Seguros, um senhor obeso, aparência de pessoa seríssima, honesta e rica, muita rica.
O odor agradabilíssimo do perfume do Sr.Rubens invadia a sala, sem pedir licença ao nosso olfato. Não sabia se olhava a sala ou o Sr.Rubens, estava encantado com tanto luxo e beleza, tão desconhecidos aos meus olhos.
O Sr.Rubens pediu-me educadamente para eu sentar numa poltrona estilo século XVIII, senti vontade de deitar, tamanho era o conforto, mas mantive-me ereto e atento. Pigarreou algumas vezes e dirigiu-me um olhar perscrutador, examinando-me dos pés a cabeça, muito sério e com uma voz grossa perguntou-me se eu conhecia as ruas do centro da cidade de São Paulo. Senti o meu rosto enrubescer-se de vergonha em mentir e respondi tartamudeando em poucas palavras que conhecia todas as ruas, sem exceção.
"Ah, se ele soubesse que eu mal sabia retornar para minha casa, no longínquo bairro da Cidade A.E.Carvalho, na zona Leste!" teria perdido o emprego, com certeza.
Após algumas perguntas sobre minha vida, minha família, meus estudos e certificar-se que eu realmente precisava trabalhar para ajudar meus pais, levantou-se e dirigiu-se a um armário, abriu-o,mexeu em alguns papéis e retirou uma maleta preta, estilo 007, caminhou em minha direção e depositou-a sobre minhas pernas e pediu-me para passar na Seção de Contabilidade e retirar o valor em dinheiro referente a duas passagens e ir para o Bairro da Lapa.
Deu-me o endereço e pediu que entregasse alguns papéis num escritório de advocacia, desejou-me boa sorte e sentou-se pesadamente na sua confortável cadeira e acendeu um charuto enorme.
Agradeci, pedi licença e sai um pouco atordoado com a mistura dos odores, do perfume e do charuto, transpirando e sem a mínima noção de onde ficava o Bairro da Lapa.
Tinha conseguido o emprego !
Peguei o dinheiro com a Dona Joana, uma senhora idosa, muito simpática e amável. Peguei a maleta 007 e sai um tanto orgulhoso e fiquei aguardando o elevador e pensando como faria para chegar até a Lapa."Onde ficava a Lapa? Era longe? Seria igual ao meu querido bairro da Cidade A.E.Carvalho?". Deixei de divagações quando escutei um som e acendeu uma lâmpada verde sobre a porta do elevador, abriu a porta do elevador e o ascensorista falou com uma voz irritada: Dessssce!
Fazia um calor insuportável, parei numa banca de Jornal na Praça Padre Manoel da Nóbrega e perguntei humildemente para o jornaleiro como fazia para chegar na Rua Coreolano no Bairro da Lapa. Explicou-me que deveria pegar um ônibus que vinha da Penha e passava na Rua XV de Novembro. Era o famigerado Penha-Lapa.
Fiquei esperando o ônibus por longos minutos embaixo de um Sol escaldante. Estava maravilhado com toda aquela movimentação: carros, ônibus, pessoas passando de um lado para o outro, guardas apitando incessantemente. Olhava para os prédios, olhava para os ônibus, para as pessoas e tinha vontade de chorar. Avistei o ônibus e fiz sinal para que o mesmo parasse e quando olhei mais atentamente fiquei estupefato, parecia que transportava toda a Metrópole, estava lotadíssimo!
Entre um empurrão e outro consegui com muito esforço subir os dois primeiros degraus, a porta fechou e fiquei prensado entre a porta traseira e um senhor muito gordo e suado. Senti vontade de descer no próximo ponto, devolver a maleta 007 para o Sr.Rubens e voltar para minha casa.Pensei:"Mas o que falaria para Papai? E a vergonha de não ser capaz de conseguir o emprego? Engoli algumas salivas, passei a mão pela testa suada e odiei o gordo, o onibus,o Sr.Rubens e Papai.Era necessário conseguir o primeiro emprego custasse o que custasse, então tinha que suportar aquele "inferno".
Procurei o endereço e encontrei-o com alguma facilidade, entreguei os papéis e peguei o ônibus de volta e cheguei depois de duas horas, muito amarrotado, cansado, suado, mas muito orgulhoso e feliz por ter cumprido minha primeira tarefa. Estava torcendo para ser dispensado e retornar no outro dia. Ledo engano! O Sr.Rubens pediu-me para ir para Vila Guilherme, numa transportadora e retirar algumas apólices de seguro, fazia parte do meu teste.
Novamente perguntei ao velhinho jornaleiro como fazia para chegar ao endereço, deu-me todas as instruções, peguei o ônibus no Parque Dom Pedro II, fui e voltei em menos de duas horas.
Entreguei as apólices para o Senhor Rubens. Olhou-me aprovadamente, deixou transparecer um sorriso de satisfação, apertou-me a mão e disse-me: Parabéns garoto! você começa a trabalhar amanhã, pode trazer todos os documentos que iremos registrá-lo. Ah, não esqueça de vir de terno e gravata!
Não contive-me de alegria, não sabia se sorria ou chorava, tamanha a minha felicidade e tristeza em encarar o Penha-Lapa de novo e ainda ter que usar terno e gravata. Nunca tinha usado terno e gravata em toda minha vida!
No dia posterior, cheguei meia hora antes, abandonado dentro de um terno azul claro e gravata vermelha que tinha emprestado do meu amigo Israel com a promessa de devolver nos finais de semana para ele ir à igreja e devolve-lo definitivamente assim que recebesse meu primeiro pagamento.
Dei todos os documentos para Dona Joana e ela apresentou-me o itinerário completo dos lugares onde deveria ir. Quase chorei em pensar em pegar trinta e dois ônibus lotadissímos como aquele Penha-Lapa. Felizmente não era somente o Penha-Lapa, existiam outros ônibus menos lotados.
Peguei o dinheiro referente a trinta e duas passagens, a maleta 007, um guia da cidade e corajosamente fui enfrentar meu primeiro dia de Office-Boy. Passei nas Lojas Americanas da Rua Direita para comprar algumas balas e doces e fui pegar a primeira condução na Praça Clovis Beviláqua.
Meu trabalho consistia em retirar algumas apólices de seguro em transportadoras em doze bairros diferentes. Alguns bairros eram tão distantes que minha memória já não os alcançam mais.
Naquela época já existia grandes enchentes na cidade e lembro-me atravessando a Av.Brás Leme com a maleta preta 007 do Sr.Rubens sobre a cabeça, pois se deixasse molhar os documentos era demissão na certa.
No começo foi muito difícil, mas com o passar dos dias tudo tornou-se uma grande aventura. Encarava tudo aquilo como uma grande diversão e tudo era motivo para festa, pois adorava ver as pessoas andando apressadamente e era com muita alegria e entusiasmo que contava a meus amigos da escola as aventuras do cotidiano. Estudava no período noturno no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, no Parque do Carmo, em Itaquera.
Foi meu primeiro emprego e orgulhava-me em trabalhar no centro da maior cidade da América Latina. Adorava jogar Fliperama, pegar as seções da tarde nos antigos cinemas do centro, às vezes parava para observar os "cantadores", e ilustres "trovadores", Homem da cobra vendendo suas milagrosas pomadas para todas as enfermidades do Mundo na Praça da Sé e comer o tradicional sanduíche de churrasco grego no Largo Paissandú, que ficava o dia todo rodando, rodando, assim como nós office boys daquela época.
Sentia muito orgulho em ser paulistano e foi minha primeira grande paixão pela cidade de São Paulo, depois viriam outras. Era um sofrimento gostoso, de estar sendo útil, de poder ajudar minha cidade, de ver e sentir novos lugares, novos aromas, novas pessoas, mas nenhum dia era igual ao outro, sempre tinha novidades. Imaginem que nós oficce boys chegávamos a promover um campeonato de futebol em pleno Pátio do Colégio com juiz, torcida e muita alegria. Era simplesmente maravilhoso!
Muito obrigado papai, muito obrigado Sr.Rubens, muito obrigado São Paulo por dar-me a oportunidade de tornar-me homem, responsável, destemido e acima de tudo um cidadão que aprendeu a amar essa cidade desde aquela época e continuar amando-a até os dias de hoje.

Histórias e mais "estórias"...

Foi pensando muito do pouco do já vivido que decidí montar este blog e contar algumas "histórias" já vividas. Algumas muito divertidas, outras nem tanto. Como já tenho algumas crônicas já publicadas num site da Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo e outras guardadas na mente,  e na medida em que for recordando de fatos, situações irei escrevendo e guardando no mesmo e se alguem tiver alguma sugestão aceito com o maior prazer.Sejam todos bem-vindos e não esqueçam de deixar seus comentários! Obrigado!