10 de jun. de 2011

Bolo de Natal


Bolo de Natal

     Papai adorava ler Karl Marx e mamãe encantava-se com a leitura de Allan Kardec. Eu, aos oito anos de idade, sem entender absolutamente nada do conteúdo daqueles “estranhos” livros, relia minha cartilha escolar do curso primário, chamada Caminho Suave e alguns gibis do Zorro e do Fantasma que eram sutilmente  escondidos entre as páginas da cartilha para não serem vistos por mamãe e evitar uma boa surra de vara de marmelo.

    Na véspera do Natal de 1.963, papai saiu de casa, no pacato bairro Parada Inglesa-SP para participar de uma importante reunião no Sindicato de Brinquedos e Instrumentos Musicais, que ficava na Av.Celso Garcia, no Brás-Sp e prometeu a mamãe que voltaria para a confraternização natalina.

    No início da noite mamãe começou a fazer um bolo de morango e quando terminou, colocou o bolo cuidadosamente sobre a mesa e disse enfaticamente que só comeríamos o bolo quando papai chegasse.

    Desolado, sentei-me diante do bolo e com as mãos no queixo e os cotovelos sobre a mesa, comecei a sussurrar uma oração para Jesus pedindo o retorno de papai o mais breve possível.

    O repetitivo “tic-tac” do relógio cuco que ficava na cozinha e alguns estampidos de fogos que iluminavam o céu, anunciavam a proximidade do dia do nascimento de Jesus e deixava-me inquieto e entre uma olhada de soslaio para mamãe e outra para a porta da cozinha para ver se papai estava chegando, colocava o dedo indicador no bolo e levava-o rapidamente até a boca.

    Faltando alguns minutos para meia-noite, papai chegou com um embrulho embaixo do braço e eu iluminei toda a cozinha com um inefável sorriso de Felicidade. Iria comer o bolo!

    Papai deu-me o embrulho acompanhado de um carinhoso beijo na testa e quando eu o abri, meus olhos marejaram diante de uma linda bola de capotão número cinco com um delicioso cheiro de couro cru. Retribuí o presente com um forte abraço e vários beijos no seu rosto.

    Posicionamo-nos ao redor da mesa e demos as mãos e mamãe iniciou uma “interminável” prece agradecendo a tudo e a todos e quando terminou, abraçamo-nos desejando Feliz Natal.

     O bolo de morango com vários furinhos produzidos pelos meus ágeis dedinhos finalmente foi cortado e servido a todos.
     Adormeci num sofá velho, na varanda, todo lambuzado de bolo, abraçado a bola de capotão, escutando o suave “tic-tac” do relógio cuco e o barulho de alguns pingos de chuva que começara a cair... Era Natal!
  

Engraxate da periferia

Todos os dias era um sacrifício danado para conseguir comida para todos, afinal, éramos cinco irmãos e tínhamos uma fome de leão e papai ganhava apenas o suficiente para não passarmos fome. Eu tinha nove anos de idade e resolvi ajudar minha família no orçamento, subitamente tive uma idéia maravilhosa... Iria ser engraxate. Mas como? Não sabia nada sobre a nova atividade e não tinha dinheiro para comprar uma caixa de engraxar, resolvi pedir ajuda para o senhor Heitor, que era um velhinho ex-combatente de guerra que todas as crianças do bairro amavam. Procurei-o e contei-lhe o meu plano de ser engraxate. Ele riu muito e se propôs a me ajudar. Começamos imediatamente a construir minha ferramenta de trabalho, a caixa de engraxar. Após algumas horas, lá estava ela prontinha para ser usada.
Corri pra mostrar para papai e ele perguntou onde eu pretendia engraxar, eu disse que iria engraxar os sapatos de todos os trabalhadores da periferia e iria montar a mesma em frente de casa. Ele meneou a cabeça e sorriu, passou a mão na minha cabeça e pediu-me que fosse me deitar, pois ainda estava escuro e afinal não tinha escova nem graxa para iniciar o meu trabalho. Pedi-lhe alguns trocados e ele imediatamente deu-me algumas moedas para comprar graxa e escova. Rasguei uma calça velha da minha irmãzinha, escondido de mamãe, é claro, e, no outro dia, sob chuva, armei minha caixa de engraxar em frente de casa, fazia parte da instalação um guarda-chuva carcomido pelo tempo e uma velha cadeira.
Esperei o primeiro freguês e as horas foram passando. Eram trabalhadores que iam para seus trabalhos, apressados e com os sapatos cheios de barro, pois a rua em que morávamos não era asfaltada, ninguém parava, não respondiam ao meu bom-dia. Toda a manhã passou e mamãe chamou-me para ir à escola. Foi uma frustração total, mas esperaria outro dia... Foi a semana toda chovendo e eu armando e desarmando a caixa e ninguém parando para engraxar. Sábado amanheceu um dia maravilhoso e enchi-me de alegria e entusiasmo para engraxar meu primeiro para de sapatos. Nada... O Sol já estava se pondo e com ele toda a minha esperança, o coração foi ficando pequenininho, uma profunda tristeza invadiu minha alma... Estava derrotado, não consegui engraxar um único par de calçados. Entrei, coloquei minha caixa de engraxar ao lado do fogão e comecei a folhear um gibi, morrendo de vergonha de não conseguir engraxar absolutamente nada... Eis que batem palmas e minha mãe vai ao portão, um senhor perguntou sobre o menino engraxate e minha mãe chamou-me, e ele disse: Parabéns, garoto! Toda a semana montando e desmontando a caixa! Quantos sapatos você engraxou? Disse-lhe que não tinha engraxado nenhum. Abriu o porta-malas da Brasília e mostrou-me vinte e seis pares de sapatos para serem engraxados. Não me contive e deixei correr algumas lágrimas sobre o meu rosto, de felicidade, de alegria, de persistência. Até hoje me lembro com muita ternura dessa passagem da minha vida.

Pastéis de feira da periferia.

O verdadeiro pastel de feira é o pastel de feira da periferia. Para comer um pastel de feira da periferia existe todo um ritual: há a necessidade, quase que uma obrigação, de ir acompanhado da “patroa”, entenda-se como esposa, companheira, amante ou mesmo a namorada. Mas tem que ir acompanhado(a) para que o prazer da degustação seja a dois.
Pode-se comer o pastel de feira logo quando se chega à feira ou ao terminar as compras, geralmente sempre pechinchando em outras bancas que é pra comer sempre mais um.
Pede-se licença, estaciona-se o carrinho de feira próximo à banca, que dependendo da hora já deve estar lotada de carrinhos. Se der muita sorte pode sentar num dos banquinhos carcomidos, que são reservados para os velhinhos e velhinhas, mas depois do meio-dia a chances são bem remotas de encontrar algum vazio.
Dependendo da periferia, o pessoal está todo uniformizado e consta até o nome da banca. E lá no fundo está um homem com os olhos puxadinhos, denunciando que é oriundo do Oriente, sempre sorridente e jamais desgrudando da escumadeira, sempre apontando aqui e alí para anunciar um freguês mais faminto e/ou apressado.
Em todas as feiras da periferia existem uma ou mais bancas de caldo de cana, a gostosa garapa, que geralmente fica ao lado da banca de pastel. Acredito que deva existir até uma parceria entre as duas bancas, mas até agora ninguém provou isso, então deixamos pra lá e vamos pedir os pastéis.
Entre várias pessoas, ergue-se o dedo indicador e pede-se com um rosto aflito: Um pastel de carne e um de frango com catupiri! Geralmente enquanto o Oriental frita os pastéis pede-se a garapa, que invariavelmente o dono pergunta se quer com limão ao abacaxi. O barulho do motor é ensurdecedor, mas o caldo é delicioso.
Nas manhãs de sábado, na Vila Maria Alta ou nas manhãs de domingo em Itaquera dava vontade de pedir “garapa com engove”, tamanha a ressaca do porre da noite anterior.
Quando os pastéis estão fritos jamais esquecer de colocar aquele tradicional vinagrete que pela sua aparência denota um sabor indiscutível e uma fatia de limão acompanha muito bem se for de carne o pastel.
Pastéis comidos e garapas bebidas, pede-se para embrulhar mais alguns pra ir comendo enquanto a “patroa” prepara o almoço de sábado ou domingo, que geralmente são mais demorados. Pode-se também levar a massa do pastel pra fazer alguns para serem comidos com uma boa cerveja gelada à noite.
Saciado, cheio e feliz paga-se e despede-se prometendo voltar na semana seguinte. Novamente pede-se licença para tirar o carrinho de feira e retorna-se para casa empurrando ou puxando o carrinho abarrotado de frutas e hortaliças dependuradas por toda a parte e tomando o maior cuidado para não amassar a “massinha”. Então é só aguardar mais uma semana para comer os tão deliciosos pastéis de feira da periferia.