2 de jul. de 2011

O TEMPO

  Eram raros os momentos em que eu ficava ao lado de papai. Estes momentos restringiam-se a alguns domingos ensolarados em que papai levava-me a um enorme jardim existente em frente da nossa casa que ficava na Rua Mangalot, no bairro Parada Inglesa, zona norte de São Paulo.
Nestes momentos tentava aproveitar cada segundo ao lado de papai da melhor maneira possível, quando jogávamos bola, adorava driblar papai, pois minha mobilidade corporal às vezes deixava papai na grama, ele levantava-se vagarosamente, sempre com um sorriso de satisfação e eu pulava nas suas costas simulando um cavalo, após simular alguns trotes, jogava-me no chão e dava um chute forte na bola e pedia carinhosamente para eu ir buscar a bola, este era o momento de papai tomar algum ar, recuperar o fôlego e convidar-me para irmos embora para casa. Meu semblante franzia-se e meu olhar de frustração aparecia ao lado de um balanço de cabeça, mas sempre obedeciam às ordens de papai, pulava no seu colo e dava-lhe um beijo carinhoso no seu rosto e saíamos em direção ao nosso lar.
Inúmeras vezes desejei mentalmente que papai perdesse o emprego, pois só assim poderíamos ficar mais tempo juntos chutando a bola de capotão que tanto eu adorava, mas sabia perfeitamente que se papai perdesse o emprego nossa família passaria por grande necessidade financeira e todos nós iríamos ficar muito tristes e com a barriga vazia, então me redimia dos meus nefastos desejos e pedia perdão a Deus por tamanha crueldade.
Estava no início do primeiro ano do curso primário, iniciando a alfabetização e estava disposto a qualquer sacrifício para conseguir ficar mais algum tempo ao lado de papai e mirabolantemente arquitetei um infalível plano: Disse para papai que estava sentindo uma enorme dificuldade em fazer cópias da Cartilha Caminho Suave e precisava urgentemente da sua ajuda. Sabia que ele jamais iria negar em ajudar-me. O seu sereno e calmo rosto ficou sério e atrás de toda sisudez do momento disse que iria ajudar-me e que eu fosse dormir cedo, pois no outro dia teríamos que acordar às 5 horas da manhã para começarmos os estudos. Não conseguia entender a sua disposição e fiquei muito arrependido em ter dito que não conseguia fazer cópias da Cartilha, mas não havia retorno e imediatamente lancei-me para baixo dos cobertores.
No outro dia, pontualmente às 5 da manhã papai balançou-me na cama e pediu que me colocasse em pé. Com os olhos inchados de tanto sono, iniciamos as primeiras lições. Papai fazia uma cópia da Cartilha e eu copiava olhando suas escritas. Foram várias vezes que “peguei-me” arrependendo e envergonhando-me por estar subtraindo tão precioso tempo de papai, mas afinal era a única maneira de poder ficar um pouco mais durante a semana com papai, poder sentir seu cheiro, sua paciência, sua dedicação e todo seu carinho de pai e seus gestos tranqüilos era um bálsamo para minha alma.
Assim que terminávamos a cópia da lição, papai ia beber café com pão e após alimentar-se despedia de mamãe com um beijo e outro beijo no meu rosto e saia apressado em direção ao trabalho. Acompanhava papai até um enorme muro e ficava acenando para ele e pedindo o seu retorno o mais breve possível, sempre dizendo: Vai com Deus!
Regressava para a mesinha onde estudávamos, colocava os braços sobre ela e repousava o rosto sobre os braços em profundos devaneios que só eram interrompidos por mamãe trazendo-me de volta ao mundo porque estava na hora de ir para escola. No caminho para escola ainda ecoava a voz doce de papai aos meus ouvidos que desapareciam com a voz pausada e rouca da professora fazendo a chamada.