

Inúmeras vezes desejei mentalmente que papai perdesse o emprego, pois só assim poderíamos ficar mais tempo juntos chutando a bola de capotão que tanto eu adorava, mas sabia perfeitamente que se papai perdesse o emprego nossa família passaria por grande necessidade financeira e todos nós iríamos ficar muito tristes e com a barriga vazia, então me redimia dos meus nefastos desejos e pedia perdão a Deus por tamanha crueldade.
Estava no início do primeiro ano do curso primário, iniciando a alfabetização e estava disposto a qualquer sacrifício para conseguir ficar mais algum tempo ao lado de papai e mirabolantemente arquitetei um infalível plano: Disse para papai que estava sentindo uma enorme dificuldade em fazer cópias da Cartilha Caminho Suave e precisava urgentemente da sua ajuda. Sabia que ele jamais iria negar em ajudar-me. O seu sereno e calmo rosto ficou sério e atrás de toda sisudez do momento disse que iria ajudar-me e que eu fosse dormir cedo, pois no outro dia teríamos que acordar às 5 horas da manhã para começarmos os estudos. Não conseguia entender a sua disposição e fiquei muito arrependido em ter dito que não conseguia fazer cópias da Cartilha, mas não havia retorno e imediatamente lancei-me para baixo dos cobertores.
No outro dia, pontualmente às 5 da manhã papai balançou-me na cama e pediu que me colocasse em pé. Com os olhos inchados de tanto sono, iniciamos as primeiras lições. Papai fazia uma cópia da Cartilha e eu copiava olhando suas escritas. Foram várias vezes que “peguei-me” arrependendo e envergonhando-me por estar subtraindo tão precioso tempo de papai, mas afinal era a única maneira de poder ficar um pouco mais durante a semana com papai, poder sentir seu cheiro, sua paciência, sua dedicação e todo seu carinho de pai e seus gestos tranqüilos era um bálsamo para minha alma.
Assim que terminávamos a cópia da lição, papai ia beber café com pão e após alimentar-se despedia de mamãe com um beijo e outro beijo no meu rosto e saia apressado em direção ao trabalho. Acompanhava papai até um enorme muro e ficava acenando para ele e pedindo o seu retorno o mais breve possível, sempre dizendo: Vai com Deus!
Regressava para a mesinha onde estudávamos, colocava os braços sobre ela e repousava o rosto sobre os braços em profundos devaneios que só eram interrompidos por mamãe trazendo-me de volta ao mundo porque estava na hora de ir para escola. No caminho para escola ainda ecoava a voz doce de papai aos meus ouvidos que desapareciam com a voz pausada e rouca da professora fazendo a chamada.