9 de jun. de 2011

Pipas no ar nas manhãs de sábados

Em 1970, éramos adolescentes e morávamos no bairro da Cidade A. E. Carvalho e o nosso passatempo favorito era confeccionar e empinar pipas nas manhãs de sábados.
Nosso encontro acontecia nas manhãs de sábados na área de entrada da casa do meu amigo Israel.
O ritual alegre era acompanhado pela garotada da periferia que tentava descobrir como fazer belas e multicoloridas pipas.
Tudo era feito com muita descontração e alegria, desde o preparo da cola feita com farinha de trigo que eu levava de casa e que exigia muito esmero para não sujar o belíssimo fogão da dona Ondina, mãe do meu colega Israel.
As folhas de papel de seda eram adquiridas na lojinha da dona Matilde, escolhidas cuidadosamente entre as diversas cores dispostas na prateleira.
Existia um momento que exigia grande concentração, era quando começávamos a “afinar” as varetas que eram retiradas do bambu do varal de roupas da dona Ondina. Nesse momento, até que adquirisse destreza com a afiadíssima faca dialogávamos sobre as novas namoradinhas, os estudos no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, que localizava-se em Itaquera e sobre o serviço como Office-boy numa Cia. de Seguros no centro de São Paulo.
O grande prazer completava-se por estar ao lado do amigo que não via há uma semana e poder detalhar o perfil da nova namorada que trocávamos assim como éramos trocados freqüentemente.
Às vezes éramos obrigados a abandonar nossa área de lazer momentaneamente, pois dona Ondina queria varrer a mesma, o que ocasionava um tempo de espera encostados no velho carro Ford semi-desmontado pelo Sr. Luis, pai do meu amigo, que era mecânico. Nesse momento passava o Zé Roque, irmão do meu amigo e parava na nossa frente com algumas peças de televisão na mão, pois o mesmo tinha uma oficina de conserto no quintal, e ficava zombando da nossa capacidade de confeccionar pipas. Gargalhadas espalhadas pelo ar entrecortadas pelos raios de Sol da bela manhã de sábado completava a nossa felicidade com a chegada do Lalá que com seu tradicional assobio chamando sua namorada que era a irmã do Israel. Saia toda perfumada, sorrindo e pisando cuidadosamente sobre os pipas para não amassá-las. Abraçavam-se carinhosamente e nós abaixávamos a cabeça concentrados na confecção da nossa namorada, que era a pipa.
Constantemente olhávamos o céu azul e a nossa maior preocupação era com o vento e entre a confecção das pipas e a eterna paciência em fazer aquelas “rabiolas” quilométricas, molhávamos o dedo com saliva e expunha-o ao vento para saber qual a direção que o mesmo soprava e qual era a sua intensidade. Dessa maneira tínhamos uma vaga noção por onde nossas pipas e nossos pensamentos voariam.
O vento da periferia sempre era bondoso conosco e jamais deixava de soprar aos sábados de manhã e às vezes trazia o aroma agradabilíssimo do café coado pela dona Ondina que era servido em xícaras de porcelana pelo Lalá e sua linda namorada. Sempre sorrindo e desejando-nos bons ventos.
Talvez por não existirem prédios, o vento soprava uma agradável brisa, na quantidade exata às nossas expectativas e aos nossos sonhos de adolescente, e soprava em quase todas as direções.
Fazíamos as pipas com perfeição e elas raramente deixavam de voar.
Tínhamos uma brincadeira maravilhosa que consistia em dar nomes às nossas pipas e geralmente ganhavam nomes da última namorada e assim que o mesmo ganhava o céu ficávamos imaginando subir junto com eles e ficarmos olhando lá de cima tudo o que tinha acontecido, acontecia ou iria acontecer no nosso querido bairro Cidade A. E. Carvalho.
Havia sábados em que o vento soprava em direção ao bairro de Itaquera e nesses sábados nossos pensamentos avistavam cenas e situações indescritíveis. Lá de cima podíamos avistar a padaria com sua enorme máquina de assar frangos, pessoas saindo com saquinhos de pães, carros com o volume do rádio um pouco acima do normal tocando músicas de Roberto Carlos, Caetano Veloso, Os Beatles e Morris Albert cantando “Fellings”. Olhando atentamente poderia observar minha caixa de engraxar sapatos que outrora colocava em frente à padaria e ficava aguardando pacientemente os fregueses.
O ponto de ônibus em frente à padaria, e motoristas e cobradores sorrindo entre um gole de café, uma coxinha comida e um cigarro aceso. Pessoas entrando pela porta traseira e o ônibus saindo vagarosamente com motoristas com óculos escuros acenando aos companheiros com destino à Praça Clovis Bevilaqua. Viagem longa que nossas pipas não conseguiam acompanhar.
Observava crianças correndo alegremente, pelo pátio da escola Milton Cruzeiro durante o recreio e o ônibus Mogi-Parque D.Pedro II que passava em alta velocidade deixando-nos atônitos.
O vento mudava um pouco a direção e de lá de cima enxergava minha mãe e outras mães do bairro lavando roupas na mina e conversando sobre o sofrido cotidiano. Enquanto as roupas eram “quaradas” pelo tempo de trocar uma receita de bolo ou reclamar do custo de vida que já naquela época fazia-se presente.
Eis que a pipa e os nossos pensamentos pairavam sobre a igreja do bairro e podíamos deliciar-nos com a tradicional quermesse onde recebia as meninas com seus cabelos cortados “à chanel”, devidamente arrumados com “laquê” e trajando lindos vestidos rodados coloridos e os meninos trajando calças “boca de sino” com cintura alta, parecendo um toureiro da periferia, e suas inconfundíveis camisetas “volta ao mundo” ou “gola olímpica”.
Sentia o aroma dos bolinhos caipiras preparados pelas mães do bairro e avistava barracas coloridas, que ajudávamos a montar, que abrigavam diversos jogos e vendas de guloseimas. As meninas eram vigiadas constantemente pelas mães ou irmãos que não permitiam beijos ou abraços, o máximo era uma piscada bem longe dos olhos severos dos pais de antigamente.
O alto-falante sussurrando uma inaudível música de Nelson Ned entrecortada pela voz rouca do amigo Israel que era o locutor oficial da quermesse, anunciando o início do jogo de bingo que jamais conseguira ganhar, completava a paisagem.
O barulho estridente do trem que fazia o trajeto Brás-Mogi das Cruzes afastava os namorados que trocavam presentes na véspera do Natal.
O vento começava a parar de soprar e era hora de recolher as pipas, nossas imaginações e nossos sonhos e retornar às nossas casas, depois de um abraço e um aperto de mão. Estávamos novamente na terra e ficávamos torcendo para que a semana passasse rápido e o vento mudasse de direção para que pudéssemos nos encontrar e avistar novos lugares e acontecimentos do pacato bairro da Cidade A. E. Carvalho.
Um passado não muito distante que ganhara as alturas através da nossa criatividade e amizade sincera e que deixou muitas saudades de um tempo em que dávamos vazão a nossa imaginação de adolescente, através de uma pipa, uma pipa nas manhãs de sábados.
Esta é uma pequena homenagem ao meu amigo Israel Brienzo que faz exatamente uns trinta anos que não vejo. Soube que anda morando lá pelas “bandas” do Norte do Paraná. Abraços, amigo, e saiba que até hoje me lembro das lindas namoradas e pipas que tanto empinamos juntos.

Um Ofice-Boy na Cidade de São Paulo na década de 70

No ano de 1971, eu era um garoto que morava na periferia, tinha quatorze anos de idade, era pobre de nascimento e tinha apenas o ginásio incompleto, então não restava-me outra alternativa a não ser começar a trabalhar para levar a namoradinha ao cinema nos finais de semana e comer cachorro quente com tubaina na padaria do bairro com os amigos Israel e Luizão.
Papai levou-me até o endereço citado no minúsculo anúncio do jornal comprado no domingo, apertou o botão do elevador, desejou-me boa sorte e foi embora.
As pernas tremiam e o suor começou a descer pela testa, estava muito quente e eu muito nervoso. Desci no 21º andar, super enjoado pelo trajeto do elevador, o coração disparado e a carteira de trabalho em branco.
Apresentei-me à recepcionista um pouco trêmulo, inseguro, bastante ansioso, mas com muita esperança em conseguir a vaga e não decepcionar Papai.
Fiquei aguardando eternos minutos ao lado de jovens apreensivos, trajando roupas simples, denunciando-os que também eram moradores da periferia o que deu-me um pouco mais de tranqüilidade.
Fui chamado pela recepcionista que conduziu-me até uma sala onde existia alguns móveis estilo colonial, muitos telefones, uma enorme pintura de eucaliptos na parede e eu diante do Sr.Rubens, gerente de uma Cia.de Seguros, um senhor obeso, aparência de pessoa seríssima, honesta e rica, muita rica.
O odor agradabilíssimo do perfume do Sr.Rubens invadia a sala, sem pedir licença ao nosso olfato. Não sabia se olhava a sala ou o Sr.Rubens, estava encantado com tanto luxo e beleza, tão desconhecidos aos meus olhos.
O Sr.Rubens pediu-me educadamente para eu sentar numa poltrona estilo século XVIII, senti vontade de deitar, tamanho era o conforto, mas mantive-me ereto e atento. Pigarreou algumas vezes e dirigiu-me um olhar perscrutador, examinando-me dos pés a cabeça, muito sério e com uma voz grossa perguntou-me se eu conhecia as ruas do centro da cidade de São Paulo. Senti o meu rosto enrubescer-se de vergonha em mentir e respondi tartamudeando em poucas palavras que conhecia todas as ruas, sem exceção.
"Ah, se ele soubesse que eu mal sabia retornar para minha casa, no longínquo bairro da Cidade A.E.Carvalho, na zona Leste!" teria perdido o emprego, com certeza.
Após algumas perguntas sobre minha vida, minha família, meus estudos e certificar-se que eu realmente precisava trabalhar para ajudar meus pais, levantou-se e dirigiu-se a um armário, abriu-o,mexeu em alguns papéis e retirou uma maleta preta, estilo 007, caminhou em minha direção e depositou-a sobre minhas pernas e pediu-me para passar na Seção de Contabilidade e retirar o valor em dinheiro referente a duas passagens e ir para o Bairro da Lapa.
Deu-me o endereço e pediu que entregasse alguns papéis num escritório de advocacia, desejou-me boa sorte e sentou-se pesadamente na sua confortável cadeira e acendeu um charuto enorme.
Agradeci, pedi licença e sai um pouco atordoado com a mistura dos odores, do perfume e do charuto, transpirando e sem a mínima noção de onde ficava o Bairro da Lapa.
Tinha conseguido o emprego !
Peguei o dinheiro com a Dona Joana, uma senhora idosa, muito simpática e amável. Peguei a maleta 007 e sai um tanto orgulhoso e fiquei aguardando o elevador e pensando como faria para chegar até a Lapa."Onde ficava a Lapa? Era longe? Seria igual ao meu querido bairro da Cidade A.E.Carvalho?". Deixei de divagações quando escutei um som e acendeu uma lâmpada verde sobre a porta do elevador, abriu a porta do elevador e o ascensorista falou com uma voz irritada: Dessssce!
Fazia um calor insuportável, parei numa banca de Jornal na Praça Padre Manoel da Nóbrega e perguntei humildemente para o jornaleiro como fazia para chegar na Rua Coreolano no Bairro da Lapa. Explicou-me que deveria pegar um ônibus que vinha da Penha e passava na Rua XV de Novembro. Era o famigerado Penha-Lapa.
Fiquei esperando o ônibus por longos minutos embaixo de um Sol escaldante. Estava maravilhado com toda aquela movimentação: carros, ônibus, pessoas passando de um lado para o outro, guardas apitando incessantemente. Olhava para os prédios, olhava para os ônibus, para as pessoas e tinha vontade de chorar. Avistei o ônibus e fiz sinal para que o mesmo parasse e quando olhei mais atentamente fiquei estupefato, parecia que transportava toda a Metrópole, estava lotadíssimo!
Entre um empurrão e outro consegui com muito esforço subir os dois primeiros degraus, a porta fechou e fiquei prensado entre a porta traseira e um senhor muito gordo e suado. Senti vontade de descer no próximo ponto, devolver a maleta 007 para o Sr.Rubens e voltar para minha casa.Pensei:"Mas o que falaria para Papai? E a vergonha de não ser capaz de conseguir o emprego? Engoli algumas salivas, passei a mão pela testa suada e odiei o gordo, o onibus,o Sr.Rubens e Papai.Era necessário conseguir o primeiro emprego custasse o que custasse, então tinha que suportar aquele "inferno".
Procurei o endereço e encontrei-o com alguma facilidade, entreguei os papéis e peguei o ônibus de volta e cheguei depois de duas horas, muito amarrotado, cansado, suado, mas muito orgulhoso e feliz por ter cumprido minha primeira tarefa. Estava torcendo para ser dispensado e retornar no outro dia. Ledo engano! O Sr.Rubens pediu-me para ir para Vila Guilherme, numa transportadora e retirar algumas apólices de seguro, fazia parte do meu teste.
Novamente perguntei ao velhinho jornaleiro como fazia para chegar ao endereço, deu-me todas as instruções, peguei o ônibus no Parque Dom Pedro II, fui e voltei em menos de duas horas.
Entreguei as apólices para o Senhor Rubens. Olhou-me aprovadamente, deixou transparecer um sorriso de satisfação, apertou-me a mão e disse-me: Parabéns garoto! você começa a trabalhar amanhã, pode trazer todos os documentos que iremos registrá-lo. Ah, não esqueça de vir de terno e gravata!
Não contive-me de alegria, não sabia se sorria ou chorava, tamanha a minha felicidade e tristeza em encarar o Penha-Lapa de novo e ainda ter que usar terno e gravata. Nunca tinha usado terno e gravata em toda minha vida!
No dia posterior, cheguei meia hora antes, abandonado dentro de um terno azul claro e gravata vermelha que tinha emprestado do meu amigo Israel com a promessa de devolver nos finais de semana para ele ir à igreja e devolve-lo definitivamente assim que recebesse meu primeiro pagamento.
Dei todos os documentos para Dona Joana e ela apresentou-me o itinerário completo dos lugares onde deveria ir. Quase chorei em pensar em pegar trinta e dois ônibus lotadissímos como aquele Penha-Lapa. Felizmente não era somente o Penha-Lapa, existiam outros ônibus menos lotados.
Peguei o dinheiro referente a trinta e duas passagens, a maleta 007, um guia da cidade e corajosamente fui enfrentar meu primeiro dia de Office-Boy. Passei nas Lojas Americanas da Rua Direita para comprar algumas balas e doces e fui pegar a primeira condução na Praça Clovis Beviláqua.
Meu trabalho consistia em retirar algumas apólices de seguro em transportadoras em doze bairros diferentes. Alguns bairros eram tão distantes que minha memória já não os alcançam mais.
Naquela época já existia grandes enchentes na cidade e lembro-me atravessando a Av.Brás Leme com a maleta preta 007 do Sr.Rubens sobre a cabeça, pois se deixasse molhar os documentos era demissão na certa.
No começo foi muito difícil, mas com o passar dos dias tudo tornou-se uma grande aventura. Encarava tudo aquilo como uma grande diversão e tudo era motivo para festa, pois adorava ver as pessoas andando apressadamente e era com muita alegria e entusiasmo que contava a meus amigos da escola as aventuras do cotidiano. Estudava no período noturno no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, no Parque do Carmo, em Itaquera.
Foi meu primeiro emprego e orgulhava-me em trabalhar no centro da maior cidade da América Latina. Adorava jogar Fliperama, pegar as seções da tarde nos antigos cinemas do centro, às vezes parava para observar os "cantadores", e ilustres "trovadores", Homem da cobra vendendo suas milagrosas pomadas para todas as enfermidades do Mundo na Praça da Sé e comer o tradicional sanduíche de churrasco grego no Largo Paissandú, que ficava o dia todo rodando, rodando, assim como nós office boys daquela época.
Sentia muito orgulho em ser paulistano e foi minha primeira grande paixão pela cidade de São Paulo, depois viriam outras. Era um sofrimento gostoso, de estar sendo útil, de poder ajudar minha cidade, de ver e sentir novos lugares, novos aromas, novas pessoas, mas nenhum dia era igual ao outro, sempre tinha novidades. Imaginem que nós oficce boys chegávamos a promover um campeonato de futebol em pleno Pátio do Colégio com juiz, torcida e muita alegria. Era simplesmente maravilhoso!
Muito obrigado papai, muito obrigado Sr.Rubens, muito obrigado São Paulo por dar-me a oportunidade de tornar-me homem, responsável, destemido e acima de tudo um cidadão que aprendeu a amar essa cidade desde aquela época e continuar amando-a até os dias de hoje.

Histórias e mais "estórias"...

Foi pensando muito do pouco do já vivido que decidí montar este blog e contar algumas "histórias" já vividas. Algumas muito divertidas, outras nem tanto. Como já tenho algumas crônicas já publicadas num site da Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo e outras guardadas na mente,  e na medida em que for recordando de fatos, situações irei escrevendo e guardando no mesmo e se alguem tiver alguma sugestão aceito com o maior prazer.Sejam todos bem-vindos e não esqueçam de deixar seus comentários! Obrigado!