Todos os dias era um sacrifício danado para conseguir comida para todos, afinal, éramos cinco irmãos e tínhamos uma fome de leão e papai ganhava apenas o suficiente para não passarmos fome. Eu tinha nove anos de idade e resolvi ajudar minha família no orçamento, subitamente tive uma idéia maravilhosa... Iria ser engraxate. Mas como? Não sabia nada sobre a nova atividade e não tinha dinheiro para comprar uma caixa de engraxar, resolvi pedir ajuda para o senhor Heitor, que era um velhinho ex-combatente de guerra que todas as crianças do bairro amavam. Procurei-o e contei-lhe o meu plano de ser engraxate. Ele riu muito e se propôs a me ajudar. Começamos imediatamente a construir minha ferramenta de trabalho, a caixa de engraxar. Após algumas horas, lá estava ela prontinha para ser usada.
Corri pra mostrar para papai e ele perguntou onde eu pretendia engraxar, eu disse que iria engraxar os sapatos de todos os trabalhadores da periferia e iria montar a mesma em frente de casa. Ele meneou a cabeça e sorriu, passou a mão na minha cabeça e pediu-me que fosse me deitar, pois ainda estava escuro e afinal não tinha escova nem graxa para iniciar o meu trabalho. Pedi-lhe alguns trocados e ele imediatamente deu-me algumas moedas para comprar graxa e escova. Rasguei uma calça velha da minha irmãzinha, escondido de mamãe, é claro, e, no outro dia, sob chuva, armei minha caixa de engraxar em frente de casa, fazia parte da instalação um guarda-chuva carcomido pelo tempo e uma velha cadeira.
Esperei o primeiro freguês e as horas foram passando. Eram trabalhadores que iam para seus trabalhos, apressados e com os sapatos cheios de barro, pois a rua em que morávamos não era asfaltada, ninguém parava, não respondiam ao meu bom-dia. Toda a manhã passou e mamãe chamou-me para ir à escola. Foi uma frustração total, mas esperaria outro dia... Foi a semana toda chovendo e eu armando e desarmando a caixa e ninguém parando para engraxar. Sábado amanheceu um dia maravilhoso e enchi-me de alegria e entusiasmo para engraxar meu primeiro para de sapatos. Nada... O Sol já estava se pondo e com ele toda a minha esperança, o coração foi ficando pequenininho, uma profunda tristeza invadiu minha alma... Estava derrotado, não consegui engraxar um único par de calçados. Entrei, coloquei minha caixa de engraxar ao lado do fogão e comecei a folhear um gibi, morrendo de vergonha de não conseguir engraxar absolutamente nada... Eis que batem palmas e minha mãe vai ao portão, um senhor perguntou sobre o menino engraxate e minha mãe chamou-me, e ele disse: Parabéns, garoto! Toda a semana montando e desmontando a caixa! Quantos sapatos você engraxou? Disse-lhe que não tinha engraxado nenhum. Abriu o porta-malas da Brasília e mostrou-me vinte e seis pares de sapatos para serem engraxados. Não me contive e deixei correr algumas lágrimas sobre o meu rosto, de felicidade, de alegria, de persistência. Até hoje me lembro com muita ternura dessa passagem da minha vida.
2 comentários:
Como se diz tudo passa... mais para nossa memoria é uma eternidade de saudades. bjs.
vc esqueceu do Laerte ? das folhas de almeirão que pegava qdo voltava do açougue. menino vc me recorda coisas ja esquecidas, brigadoooooooooo. por fazer meu cerebro funcionar em tempos remotos kkkk bjs. te amo
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