30 de jul. de 2011

Histórias de Papai

                                                                                                                                                                                                                                                                              Enquanto papai não chegasse em casa não poderíamos jantar, às vezes ficava com muita raiva, devido à fome que invadia meu estômago, resignava-me num cantinho da mesa e ficava humildemente aguardando o retorno de papai e quando papai chegava em casa, levantávamos da mesa e corríamos dar um abraço e um beijo nele e pedíamos que se sentasse para jantar. Não, tínhamos que esperar papai tomar banho para iniciarmos nossa refeição. Aquele banho de papai parecia que demorava uma eternidade e meu estômago roncando, roncando. Papai sentava-se a mesa e mamãe servia-o, após servi-lo éramos servidos e começávamos a comer vagarosamente sempre observando a calma e o olhar de agradecimento de papai em tê-lo esperado para a janta.
                 Após a janta vinha a nossa recompensa, ficávamos algum tempo sentados num velho banco de madeira no quintal de casa ouvindo várias histórias maravilhosas contadas por papai. Jamais pedíamos para papai contar a mesma história e o repertório de histórias era vasto, mas a história que mais me impressionava era quando ele contava que por algum tempo tinha sido ajudante de carvoeiro no meio do mato. Seu relato, com voz pausada enfatizava as condições de precariedade existente naquela época e deixava-nos atônitos quanto a sua bravura em passar vários dias no meio do mato, entre bichos,  dormindo numa palhoça improvisada e colocando fogo em madeiras para virar carvão, ser ensacado e transportado para a cidade.
                 Sempre pedia detalhes sobre o que comiam, o que faziam enquanto as madeiras eram queimadas, como eles comportavam-se diante de noites chuvosas, temperaturas baixas, saudades da família. Imaginava-me no meio do mato ajudando meu avô, todo sujo de carvão  e correndo atrás de passarinhos, borboletas e a noite ouvindo o piar de corujas, pássaros estranhos e outros animais como onça, tatu, lagarto.
               Nas noites de lua cheia as histórias ficavam mais emocionantes, pois a descrição era ilustrada com algumas mulas sem cabeça, saci pererê, curupira entre outros da nossa lenda e folclore tanto comentados pelos nossos antepassados.
              Lá pelas nove horas da noite, era hora de entrar e recolhermos para nossas camas e controlarmos nossos medos e aflições, fechar os olhos e ficar torcendo para a noite passar logo e chegar outro dia a noite para escutarmos mais histórias fantásticas. Então papai apagava a luz do lampião, dava um beijo na face de cada um de nós e recolhia-se para o seu quarto. Sempre ouvia papai conversar algumas palavras com mamãe e depois tudo se fazia silêncio, ouvíamos apenas o som de grilos e sapos que habitavam ao redor da nossa casa.Era hora de sonhar...

25 de jul. de 2011

CARTA DA NETINHA PARA O VOVÔ

Querido Vovô, 

                Já faz tempo que ando querendo escrever uma cartinha para o senhor, mas o meu “tempinho” com brincadeiras tem impedido esta árdua tarefa. Mas hoje me sobrou um tempinho e decidi escrever algumas palavras do meu pequeno vocabulário, muito ensinado pelo senhor, por mamãe, por titio e pelas tias da escolinha que tanto amo para dizer o que meu coraçãozinho anda muito feliz pela sua presença entre nós.
                 Não se assuste com algumas verdades e outras “mentirinhas” bem características da gente que tem apenas três aninhos. Tenho notado seu esforço em tentar educar-me da sua maneira um pouco arcaica, mas tenho prestado muita atenção e sinto que o Sr.procura orientar-me meigamente e a sua paciência é realmente surpreendente.
                Não fique zangado comigo não, quando derrubo comida no chão, pois como o Senhor sabe minha coordenação motora ainda não é muito boa assim como vocês adultos.
               Obrigada por deixar-me pular alegremente sobre a cama da mamãe e ainda o Senhor dizer que assim que ela chegar é para eu parar, tenho tentado parar, mas...como o Senhor sabe, às vezes fico muito empolgada e mamãe dá algumas broncas e vejo que o Senhor Sorri marotamente. Isto me faz muito feliz!
               Adoro esconder-me embaixo da cama e sempre dizem que tem “bicho”, que o chão está frio, sujo, mas eu não me importo, se o Senhor Soubesse como é gostoso observar o pés de vocês aqui debaixo! é outro ângulo do mundo. Nossa, como vocês andam nervosos comigo! só  porque outro dia fiquei comendo deliciosamente um Danone e refletindo sobre meu mundinho, deixei derramar apenas um pouquinho no chão, afinal não existe iluminação neste espaço.
              Agora uma das “coisas” que mais adoro é quando o Senhor leva-me para dormir, cobre-me cuidadosamente com o meu cobertorzinho branco e começa a contar histórias fantásticas usando e abusando de onomatopéias nunca escutadas em toda minha vida, fico prestando uma atenção até chegar o final da história e quando a mesma termina sempre peço a continuação e o Senhor Diz: Não, agora vamos dormir meu anjinho que amanhã conto a continuação da história. Poxa, que tristeza ter que dormir e não ouvir a continuação!
              Quando escuto sua voz ao longe já estou quase dormindo, fecho e abro os olhos e viro-me para o lado e lembro-me que temos que rezar, aí rezamos o “Pai Nosso” que o Senhor ensinou-me e pedimos ao Papai do Céu que nos abençoe, termino as últimas palavras já sonhando com os anjinhos.
               Mas o que realmente faz-me muito feliz é quando vamos ao Parque de Diversão. O Senhor não imagina a minha alegria em poder andar de bicicleta, ir observando árvores, flores, casas e cantando algumas músicas tão estranhas, que é da sua época, mas canto-as, ou tento cantá-las. Sempre levamos brinquedos para brincar na areia e a sua disposição em sentar-se comigo e fazer lindos castelos que às vezes eu os desmancho e o Senhor fica um pouquinho zangado, mas não liga não vovô, isto é apenas para o Senhor construir outro e podermos ficar um pouquinho mais construindo castelos neste nosso mundinho de sonhos misturados com sua realidade.
             São tantas coisinhas a ser faladas que me faltam palavras, mas o que quero grafar e dizer de coração é que amo o Senhor mais que o resto do mundo! Obrigado por existir e fazer-me muito feliz. Um beijinho! Eu te amo! Conta outra “históinha?”

15 de jul. de 2011

UTOPIA

       Como posso querer paz se já trabalhei numa indústria bélica? Como posso querer amor se já odiei? Como posso querer viver já desejei morrer?
        Mas ainda acalento um desejo veemente de ver este mundo sem pobres, sem miseráveis, sem fome, sem guerra, sem catástrofes, de crianças felizes com pais presentes e avôs amáveis. De pessoas felizes em estar por aqui.
        Sei que é utopia, é um sonho de ver este mundo feliz, mas façamos nossa parte esparramando amor e a cada dia plantando no nosso coração uma sementinha criança de esperança em sermos exemplos e podermos dizer: Nós somos o mundo, vamos viver da melhor maneira possível e....
Não haverá saída... seremos felizes..não há dúvida!

14 de jul. de 2011

VIDIOBEL - NOSSA PRIMEIRA TV


         1.968 foi o ano que adquirimos nosso primeiro aparelho de TV da loja do turco da Praça Ana das Dores, no bairro Cidade A.E. Carvalho, em São Paulo. Até então não tínhamos TV e sempre assistíamos na casa da vizinha. Realmente não tínhamos uma vida muito agradável, pois era muito constrangedor pedir humildemente para a vizinha se poderia assistir a TV, às vezes a gente disfarçava e levava um pedaço de bolo pra vizinha e por lá mesmo a gente ficava sentado num canto do sofá assistindo desenhos até começar a novela e então mamãe gritava do outro lado da rua, era hora de entrar e abandonar a televizinha.
Quando mamãe anunciou que tinha comprado uma TV, nós crianças ficamos muito eufóricos e não víamos a hora da mesma chegar.
O caminhãozinho estacionou em frente de casa e perguntaram se era ali que morava mamãe, Nós, alegres mostramos o caminho e os dois carregadores/montadores pegaram aquela caixa enorme e depositaram cuidadosamente na sala de casa. Imediatamente após mamãe assinar alguns papéis os homens começaram a montar a TV.
Não havia espaço para tanta alegria entre nós e acompanhávamos cada peça retirada da caixa com muita atenção e sempre perguntando se haveria a possibilidade de assistirmos a TV naquele dia e os montadores diziam que dependia muito do nosso comportamento, se ficássemos quietinhos seria possível, senão não seria possível. Houve um silêncio sepulcral entre nós até a TV ser ligada e aparecer a primeira imagem de uma propaganda da Sheel (gasolina), não houve como segurar nossa explosão de felicidade e abraçamo-nos e demos vários gritos de alegria e independência da TV da vizinha. Não haveria mais sofrimento, mamãe nunca mais iria nos chamar no melhor momento do desenho. Muita alegria!
Eu tinha e ainda tenho uma relação dos melhores momentos da minha vida e este está relacionado entre os primeiros.
Naquele dia ficamos até tarde assistindo a TV até papai chegar do serviço e ficar encantado com a TV. Mamãe sentou-se num canto do sofá e sorria com ar de muita satisfação.
Após alguns dias que a TV estava em casa, já estava muito bem definido nossos programas favoritos. Eu adorava assistir luta livre, minhas irmãs deliciavam com pífias novelas e foi numa destas disputas por canal que minha irmã Suely arremessou um tamanco de madeira contra a minha pessoa e acabou acertando a lateral da nossa TV. Colocamos a mãos na cabeça e decidimos não falar nada para mamãe, até o dia que ela descobriu e aplicou uma memorável surra de vara de marmelo.
Passados alguns dias mamãe comprou na lojinha da Dona Matilde um plástico que simulava as cores da TV, o plástico tinha três cores: na parte superior era azul, simulando o céu, na parte do meio era verde que dava a impressão que era a mata e na parte inferior era cinza claro simulando a terra, o solo. E assim nossos programas tinham mais vida e éramos muito felizes.
Foram vários os programas favoritos e que marcaram profundamente nossa vida naquela época, lembro-me de alguns como: Festival de música da Record, Programa de Luta Livre e Ted Boy Marino era nosso herói, a novela Irmões Coragem, um desenho japonês chamado Nacional Kid, Corrida Maluca, Silvio Santos, O Vigilante Rodoviário com seu querido e amado cão chamado Lobo, Viagem ao fundo do mar, Perdidos no espaço com o amável e ingênuo Dr. Smith, Pernalonga, A praça é Nossa, O Zorro, Lessie, A Feiticeira, Os três Patetas, O gordo e o Magro entre outras jóias raras que minha mente não alcança mais.
Maravilhosa TV Vidiobel que tanto nos proporcionou alegrias e momentos inesquecíveis e encantadores!

13 de jul. de 2011

SOLIDÃO E LEITURA


       Após breve estadia na casa da minha tia em Guarulhos, no ano de 2.000, segui meu caminho por quartos de cortiços e pensões escuras, vivendo miseravelmente e comendo em restaurantes de Hum Real, longe da maravilhosa tecnologia, sem recursos financeiros para comprar um simples livro num sebo da vida e para fugir um pouco da realidade do cotidiano comecei a ler desesperadamente tentando achar algum lugar no mundo, nos castelos medievais, na linda cidade de Macondo do livro  "Cem anos de Solidão" de Gabriel Garcia Marques ou talvez acompanhar nosso herói Dom Quixote ou  morar na pensão onde morava Clarissa de Érico Veríssimo.
Foram vários livros lidos e inúmeras visitas a biblioteca do Seródio. Lia todos os dias aproximadamente umas oito horas, sempre à noite, quando chegava do serviço ficava até as seis horas da manhã lendo, lendo e lendo.
         Eu estava vivendo de um sonho, o sonho da leitura e da maravilhosa literatura, quanto mais eu lia mais queria ler e assim conheci um pouco da obra e vida do nosso maior escritor brasileiro Machado de Assis. Sentia-me oprimido diante de tantas crônicas maravilhosas, tantos escritores sapientíssimos e resolvi avançar um pouco mais e comecei a ler grandes clássicos da literatura universal até que um livro mudou minha vida e minha maneira de pensar sobre tudo e sobre todos.
          Num determinado dia minha filha chegou em casa e disse que tinha uma ótima dica de leitura passada por professores da faculdade e indicou-me “Os miseráveis” de Victor Hugo. Comecei a ler o livro e fiquei apaixonado pela leitura e quanto mais lia, mais emotivo ficava, cheguei a alguns momentos a chorar e só ai percebi o tanto quanto um livro pode emocionar um leitor. Terminei a leitura dos Miseráveis e senti-me preparado para começar a escrever alguns pífios textos e sempre escrevia e guardava-os, com receio que alguém visse e pudesse apontar algum erro de português.
          A ousadia fez-me conhecer um pouco da obra de Fiodor Dostoiéviski, autor russo, o Machado de Assis dos Russos, simplesmente maravilhosas as obras. Mas...infelizmente comecei a ler um pouco tarde, somente aos quarenta anos de idade, se soubesse o prazer que uma leitura proporciona começaria a ler livros quando criança, bem criança, mas como diz o “ditado popular” antes tarde do que nunca, começamos, agora o difícil é parar. Cada dia que passa sinto uma necessidade enorme de escrever algo e ler um pouquinho mais.  Enquanto conseguir mover os dedos e enxergar seguirei escrevendo sobre emoções vividas e fatos passados e sempre acompanhando a evolução educacional da minha netinha, pois em breve será ela que lerá pra mim e eu ditarei algumas poucas crônicas perdidas no fundo dos poucos neurônios carcomidos pelo tempo e pela vida. Fechar os olhos e poder dizer com dignidade: Valeu a pena viver...e ler...e escrever. “Tá escrito” leiam! O quê?

12 de jul. de 2011

TIO AGOSTINHO


Toda criança gostaria de ter um tio como o tio Agostinho. Desde criança, quando tio Agostinho nos visitava nossa casa transformava-se numa grande festa, tamanho era o carinho que tínhamos por ele.
         Alegre, brincalhão, sempre de bem com a vida, participativo e adorava todas as crianças, nós amávamos tio Agostinho, principalmente quando ele nos protegia das  surras de vara de marmelo que mamãe sempre aplicava na gente. Mamãe pedia para ele sair da frente e ele não saia e levava várias varadas de marmelo por nós e ria alto, zombando com tudo e com todos. Que maravilha aquele momento! Nós crianças adorávamos aquele momento que sempre terminava com um comentário de mamãe dizendo: Você acaba “estragando” meu castigo e ele sempre respondia: Ah, Thereza! deixa pra lá eles ainda são crianças! Quando eu for embora você pode aplicar a surra, agora não. Faz um cafezinho pra gente comemorar a surra frustrada! Mamãe caia na gargalhada e ia preparar o tal do cafezinho.  Nós olhávamos com tanta admiração para tio Agostinho e gostaríamos que ele ficasse morando conosco  eternamente, mas tio Agostinho era caminhoneiro e após várias brincadeiras, contar várias piadas e risos ecoados pela casa beijava-nos e dirigia-se a boleia do caminhão para pegar a estrada sem destino, levando apenas a solidão e nossos gritos e risadas na sua mente pela longa estrada.
         Nós fomos crescendo e nossa admiração por tio Agostinho acompanhava nosso crescimento, passamos da fase de criança para adolescente e alguns momentos na minha vida são inesquecíveis e os levarei comigo e contarei a todos onde estiver com um orgulho danado.
         Nunca tinha ido ao cinema e quando completei doze anos tio Agostinho prometeu que iria levar-me ao cinema, fiquei eufórico e lá fomos nós assistir meu primeiro filme chamado “De caniço e Samburá” com Jerry Lewis no cine Júpiter no bairro da Penha, em São Paulo. Saí do cinema encantado, vocês não imaginam quanta alegria invadiu minha alma naquele dia.
          Minha primeira bicicleta foi um presente por ter passado de ano na escola, lembro-me perfeitamente que eu estava jogando bolinha de gude com alguns moleques na rua, no bairro Cidade A.E. Carvalho, em São Paulo e lá aparece tio Agostinho com uma linda bicicleta preta, aro 28. Não me contive de felicidade, joguei todas as bolinhas pro alto, dei um apertado abraço no tio e saí pedalando por baixo do quadro, pois eu não conseguia atravessar as raquíticas pernas por cima do quadro.
        Pedi para fazer uma viagem para qualquer lugar em um imponente caminhão ao qual ele estava dirigindo e saímos de São Paulo à Belo Horizonte, comemos um frango assado por lá, fizemos algumas paradas e nos divertimos muitíssimo, com a paisagem, a estrada e o clima da viagem.
         Foram várias passagens e histórias ao lado do tio Agostinho, pois se fosse contá-las ficaria muitas horas descrevendo tanto carinho e alegria em estar ao seu lado.
        Valeu a pena passar por esta vida, ser criança, adolescente e ter um tio tão maravilhoso como tio Agostinho. Obrigado tio Agostinho. De coração!

11 de jul. de 2011

O QUEIJO


              Eu estava no limiar da sobriedade e do alcoolismo. Carregava uma enorme mochila nas costas repleta de problemas sentimentais insolúveis e quando a noite aproximava-se eu ia tirando um a um e esparramava-os pela  mente dominada pelo álcool e tentava achar soluções fenomenais sob altos devaneios etílicos.
              Certo dia após “tomar todas” e já estar devidamente embriagado, cheguei à casa de mamãe cantarolando uma linda música de Chico Buarque com quatro garrafas de cervejas geladas em baixo dos braços.
              Desci os vários degraus existentes no estreito corredor esbarrando nas paredes e consegui chegar a passos trôpegos até a cozinha. Vagarosamente abri a porta, entrei e sentei-me pesadamente numa cadeira. Procurei um abridor de garrafa e após alguns minutos consegui encontrar um, abri uma das garrafas de cerveja, despejei vagarosamente num copo e bebi o primeiro gole e comecei a observar tudo que estava ao meu redor. Tudo girava, fechei os olhos e quando eu os abri observei um queijo em cima do armário de cozinha. Refleti profundamente e cheguei a conclusão que mamãe tinha se esquecido de guardar o queijo na geladeira. Peguei o queijo e fui guardá-lo na geladeira, mas inesperadamente deu uma vontade enorme de comer um pedaço daquele queijo. Cortei um pequeno pedaço e enfiei rapidamente na boca e o resto eu guardei na geladeira com medo de alguém notar.
                Voltei novamente para a cadeira, enchi o copo de cerveja e senti que o tal queijo estava com um gostinho de sabão, não dei muita importância, afinal nada era mais grave do que os meus problemas naquele momento. Mais alguns goles de cerveja e minha boca começou a espumar e comecei a cuspir incessantemente até que consegui acordar mamãe e assim que ela apareceu na minha frente questionei-a sobre a procedência do queijo, do gosto duvidoso, da validade e mamãe calmamente disse: Pois é meu filho, isto que você comeu não é queijo e sim sabão de coco.
               Esbocei um sorriso espumante e escondi-me de vergonha atrás de uma garrafa gelada de cerveja. Até hoje quando vejo um saboroso queijo branco sinto certo gostinho de sabão de coco na boca. Lembro-me do caso, limpo a boca e degusto assim mesmo, com ou sem cerveja.

10 de jul. de 2011

CHURRASCO

                                                                                                        CHURRASCO

           A fumaça sobe e mistura-se com a alegria estampada no rosto de cada “churrascante”. Passados alguns minutos, ouvem-se alguns estalos do carvão começando a pegar fogo e algumas latas de cerveja sendo abertas. O cheiro delicioso de carne sendo assada é sentido a vários metros de distância.
           O clima é de festa e confraternização, abraços efusivos e comprimentos inconseqüentes são notados, ouve-se um grito de felicidade pela presença de um amigo chegando e trazendo um apetite invejável. Alguns se sentam ao redor da churrasqueira e ficam conversando sobre o cotidiano, mas invariavelmente o assunto gira em torno das últimas noticias da mídia, mulheres, futebol e alguns mais atrevidos falam sobre política. Quando trazem crianças e mulheres, nota-se que em pouco tempo as “rodinhas” de crianças e mulheres já estão formadas e só chegam perto da churrasqueira quando sentem fome e pedem com uma cara de piedade um pedaço de carne.
           O churrasco é um estado de espírito, há que estar com a alma tranquila, um astral elevadíssimo e vontade de viver, viver intensamente, esquecendo as cizânias da semana, a cara do chefe, a nota baixa na escola, os  engarrafamentos, as dívidas, os carnês, enfim é deixar levar-se por aquele momento sublime e inesquecível. Viver é preciso!
           Os melhores churrascos são aqueles que não são programados,  reúnem-se numa porta do bar,  da escola,  da faculdade,  ou qualquer outro lugar,  passam num açougue, compra-se a carne,  carvão,  sal grosso e cervejas e acendem a churrasqueira com ar de vitória. Quantos desses já participei! Foram vários.
           Há os churrascos que somos convidados e às vezes nos arrependemos de ter saído de casa, pois são específicos para uma determinada categoria de profissão. Aí falam sobre cirurgia, plástica, medicamentos. Foi num desses que eu participei e o pessoal, a maioria médicos e enfermeiras falando sobre operações, cirurgias, etc. dá vontade de sair correndo e comer um churrasquinho do tiozinho da esquina e falar sobre qualquer assunto,  menos ferimentos,  braço quebrado, etc. mas, passou, passou e deixa o carvão queimar que tem muita conversa para expandir a alma .
            Após várias rodadas de carne assada, alguns sentem-se no dever de armar uma boa rodada de truco, aí quem tem mulher é devidamente odiado quando senta-se a mesa para participar, podem esquecer que irão pedir para comprar mais carne e mais cervejas e jamais sairão antes da meia-noite da mesa. Coitado do churrasqueiro, isto quando a carne fica lá esturricando, abandonada  e o grau etílico misturado com a emoção do jogo fazem da carne uma mera coadjuvante do cenário.
            Churrascada assistindo uma emocionante partida de futebol também é bem “legal”, às vezes sai cada discussão que dá até medo, mas no final tudo termina bem.
            Nós brasileiros adoramos fazer churrasco, principalmente quando conseguimos reunir toda nossa família e lá ficarmos conversando despreocupadamente sobre tudo e sobre o nada, aí estamos carregando nossas energias para mais uma semana de dura baralha pela sobrevivência. Viva o Churrasco que tanto amamos! Vamos fazer um churrasco?

8 de jul. de 2011

PIRULITOS


Sempre que alguém da nossa família ficava gripado, mamãe imediatamente preparava um xarope de Guaco para aliviar nosso sofrimento.
         Num determinado dia minha irmãzinha ficou muito gripada e imediatamente mamãe correu para cozinha para começar a preparar o tal xarope. Adorava observar mamãe cozinhar, nem tanto para aprender e sim para dar umas “beliscadas” nas delicias que sempre ela fazia.
         Mamãe mexia aquele caldo com uma paciência de Buda e eu observando pedi para ela fazer um pirulito com aquele caldo. Imediatamente fiz um canudinho de papel em formato de cone e pedi para ela encher com o melaço,  coloquei um palito de madeira e passados alguns minutos o mesmo já estava pronto para ser chupado.
        Enquanto degustava o pirulito surgiu uma ideia sensacional: Pedi para mamãe fazer alguns pirulitos com o açúcar derretido pois eu iria vender e arrecadar um “dinheirinho” para comprar mistura.
      Mamãe sorriu cândidamente e aceitou o convite, mas lembrou-me que eu tinha apenas nove anos e não poderia sair da frente de casa, pois havia algumas pessoas de má índole circulando pelo bairro onde morávamos e poderiam mexer comigo.
        De tanto insistir,  mamãe concordou em fazer os pirulitos, mas enfatizou que deveria ficar próximo de casa.
         Alegremente dirige-me a casa do Sr.Heitor, um senhor idoso que todos nós adorávamos e pedi para ele construir um tabuleiro para colocar os pirulitos. Sorriu amigavelmente,  pegou uma tábua,  uma furadeira e pôs-se a fazer o furos, após algum tempo o tabuleiro já estava pronto. Sr. Heitor colocou uma alça no tabuleiro e enroscou-o no meu pescoço, afagou minha cabeça e desejou-me muita boa sorte no meu novo empreendimento.
         Mensurar a Felicidade de um garoto de nove anos diante da possibilidade de tornar-se um novo milionário vendendo pirulitos era uma grande piada escondida na minha tola cabecinha. Coisa de criança!
        Cheguei em casa eufórico e pedi para mamãe começar a fazer os pirulitos e ela disse que só faria os mesmos a noite e que eu iria vendê-los somente no dia seguinte. Um tanto frustrado acatei mamãe e não via a hora de chegar o momento de preparar os pirulitos.
        A grande panela foi colocada no fogo, em seguida o açúcar e eu xeretando ao redor, até que ela pediu para eu ir fazendo os canudinhos e colocando-os no tabuleiro. Após dispor todos os canudinhos no tabuleiro,  mamãe colocou a calda,  esperou um pouquinho e colocamos os palitos. Pronto os cinquenta pirulitos já estavam prontos, era só aguardar outro dia e sair para vendê-los.
           Quando o  Sol apareceu , coloquei o tabuleiro no pescoço e sai sem fazer nenhum barulho e fiquei em frente de casa oferecendo os pirulitos para os trabalhadores.  Nem olhavam para minha cara,  estavam apressados e seis horas da manhã não era um horário apropriado para chupar pirulito.
           Lá pelas nove horas da manhã entrei em casa sem vender nenhum pirulito e pedi para mamãe se podia dar umas voltas pelo quarteirão e ela concordou, mas insistiu que deveria retornar logo.
           Batia palmas em algumas casas e oferecia os pirulitos, alguns compravam de dó da minha pessoa, outros balançavam a cabeça negativamente e nem me atendiam. De casa em casa consegui vender quase todos os pirulitos e voltei pra casa antes do meio dia com o espírito envolvido num manto de vitória. Tinha conseguido!
          Vendia os pirulitos de segunda-feira à sábado, às vezes sobrava alguns e eu e minhas irmãzinhas chupávamos. Com o lucro das vendas dos pirulitos ajudava mamãe comprar mistura, açúcar e sempre sobrava algum trocado para comprar a Caixinha da Sorte e alguns doces de abóbora que tanto amava.
         Passado algum tempo, mudei de atividade e fui ser Engraxate. Engraxate da Periferia.

2 de jul. de 2011

O TEMPO

  Eram raros os momentos em que eu ficava ao lado de papai. Estes momentos restringiam-se a alguns domingos ensolarados em que papai levava-me a um enorme jardim existente em frente da nossa casa que ficava na Rua Mangalot, no bairro Parada Inglesa, zona norte de São Paulo.
Nestes momentos tentava aproveitar cada segundo ao lado de papai da melhor maneira possível, quando jogávamos bola, adorava driblar papai, pois minha mobilidade corporal às vezes deixava papai na grama, ele levantava-se vagarosamente, sempre com um sorriso de satisfação e eu pulava nas suas costas simulando um cavalo, após simular alguns trotes, jogava-me no chão e dava um chute forte na bola e pedia carinhosamente para eu ir buscar a bola, este era o momento de papai tomar algum ar, recuperar o fôlego e convidar-me para irmos embora para casa. Meu semblante franzia-se e meu olhar de frustração aparecia ao lado de um balanço de cabeça, mas sempre obedeciam às ordens de papai, pulava no seu colo e dava-lhe um beijo carinhoso no seu rosto e saíamos em direção ao nosso lar.
Inúmeras vezes desejei mentalmente que papai perdesse o emprego, pois só assim poderíamos ficar mais tempo juntos chutando a bola de capotão que tanto eu adorava, mas sabia perfeitamente que se papai perdesse o emprego nossa família passaria por grande necessidade financeira e todos nós iríamos ficar muito tristes e com a barriga vazia, então me redimia dos meus nefastos desejos e pedia perdão a Deus por tamanha crueldade.
Estava no início do primeiro ano do curso primário, iniciando a alfabetização e estava disposto a qualquer sacrifício para conseguir ficar mais algum tempo ao lado de papai e mirabolantemente arquitetei um infalível plano: Disse para papai que estava sentindo uma enorme dificuldade em fazer cópias da Cartilha Caminho Suave e precisava urgentemente da sua ajuda. Sabia que ele jamais iria negar em ajudar-me. O seu sereno e calmo rosto ficou sério e atrás de toda sisudez do momento disse que iria ajudar-me e que eu fosse dormir cedo, pois no outro dia teríamos que acordar às 5 horas da manhã para começarmos os estudos. Não conseguia entender a sua disposição e fiquei muito arrependido em ter dito que não conseguia fazer cópias da Cartilha, mas não havia retorno e imediatamente lancei-me para baixo dos cobertores.
No outro dia, pontualmente às 5 da manhã papai balançou-me na cama e pediu que me colocasse em pé. Com os olhos inchados de tanto sono, iniciamos as primeiras lições. Papai fazia uma cópia da Cartilha e eu copiava olhando suas escritas. Foram várias vezes que “peguei-me” arrependendo e envergonhando-me por estar subtraindo tão precioso tempo de papai, mas afinal era a única maneira de poder ficar um pouco mais durante a semana com papai, poder sentir seu cheiro, sua paciência, sua dedicação e todo seu carinho de pai e seus gestos tranqüilos era um bálsamo para minha alma.
Assim que terminávamos a cópia da lição, papai ia beber café com pão e após alimentar-se despedia de mamãe com um beijo e outro beijo no meu rosto e saia apressado em direção ao trabalho. Acompanhava papai até um enorme muro e ficava acenando para ele e pedindo o seu retorno o mais breve possível, sempre dizendo: Vai com Deus!
Regressava para a mesinha onde estudávamos, colocava os braços sobre ela e repousava o rosto sobre os braços em profundos devaneios que só eram interrompidos por mamãe trazendo-me de volta ao mundo porque estava na hora de ir para escola. No caminho para escola ainda ecoava a voz doce de papai aos meus ouvidos que desapareciam com a voz pausada e rouca da professora fazendo a chamada.

1 de jul. de 2011

Lápis de cor



Naquela manhã do rigoroso inverno de 1.961 parecia que o mundo ia acabar, o céu estava muito escuro, prenunciando um enorme temporal. A luz da cozinha foi acesa, ouvi  barulho de água da torneira enchendo uma chaleira e o barulho de alguns fósforos sendo acesos, era mamãe que sempre levantava bem mais cedo do que todos nós para fazer os preparativos para o café matinal.
         O barulho incessante do vento assoprando ruidosamente lá fora, fazia-me encolher na cama e sentir um pouco de medo do fim do mundo, que naquela época já existia alguns profetas anunciando que iria chegar. Pensava que aquele dia seria realmente o final e tudo estaria acabado. Nunca mais poderia jogar a minha querida bola de capotão com papai que ganhara  no Natal , não poderia mais brincar com meus coleguinhas de “mão na mula”, bolinha de gude, rodar pião, pega-pega e outras brincadeiras da época, sentia-me muito triste em ter que partir não sabendo pra onde, realmente não estava preparado para o fim do mundo.
          O passarinho do relógio cuco anunciou seis cantos, eram seis horas. Papai  levantou e dirigiu-se ao banheiro para sua ablução matinal, eu encolhi-me na cama um  pouco mais e fiquei esperando ser chamado por mamãe para ir à escola.
           O cheiro agradabilíssimo de café coado por mamãe invadia todos os cômodos da casa e coloquei-me de pé rapidamente. Assim que papai saiu do banheiro eu entrei para tomar banho e fiquei imaginando irmos para escola sob aquele temporal que não demoraria muito a desabar. Mamãe apressou-me com alguns toques na porta, saí e sentei-me preocupadíssimo a mesa para tomar café com rabanadas que papai tanto apreciava. Naquele dia eu estava muito introspectivo, calado, sério e todos notaram, mas continuaram a falar do cotidiano sem fazer comentários a meu respeito.
           Papai deu um beijo na mamãe, um beijo na minha testa e saiu apressado para o trabalho debaixo de alguns pingos que começara a cair. Logo em seguida eu e mamãe saímos para a escola. Iria ter aula de desenho e a professora Judite deixou bem claro que quem não trouxesse lápis de cor não entraria na sala.
         Chegamos na escola sob um forte temporal que começara a cair e mamãe abriu minha mochila para ver se tudo estava certo, se não faltava nenhum material escolar e repentinamente franziu a testa e fez uma cara de espanto e disse que eu tinha esquecido a caixa de lápis de cor. Minha reação também foi de espanto, pois tinha colocado os lápis na minha mochila e não sabia quem tinha tirado de lá. Comecei a chorar baixinho e mamãe acalmou-me passando a mão no meu rosto e dizendo que iria pegar os lápis em casa e voltaria rapidamente.
         Entrei no pátio da escola, procurei os alunos da minha classe, entrei na fila, cantamos o Hino Nacional e dirigimo-nos a sala de aula sob a supervisão da professora. Sentamos todos educadamente,  a professora fez a chamada e logo em seguida distribuiu os desenhos que seriam pintados naquela aula. Quando  ela percebeu que eu não tinha lápis de cor, pediu gentilmente que eu aguardasse mamãe do lado de fora da sala de aula.
          Saí morrendo de vergonha e fiquei perto da porta aguardando eternos minutos o retorno de mamãe. Foram momentos de angustia, perplexidade e medo. Às vezes colocava o rosto numa pequena janelinha da porta e via todos os alunos pintando alegremente e eu ali do lado de fora aguardando o lápis de cor. O vento gélido no corredor, o barulho do trovão e os raios apavoravam-me e eu comecei a rezar baixinho  para que aquele momento cessasse o mais breve possível.
            Avistei mamãe no final do corredor e corri até ela com os olhos marejados, mamãe entregou-me a caixa de lápis de cor, beijou meu rosto e pediu carinhosamente que eu entrasse na sala de aula rapidamente.
             Pedi licença para professora para entrar na sala e amaldiçoei-a mentalmente até chegar na “carteira escolar”. Sentia-me culpado por ter feito mamãe ficar toda molhada e eu comecei a pintar o desenho que acabou todo borrado por alguns pingos de lágrimas de arrependimento e só então descobri o verdadeiro amor que uma mãe nutre por um filho em todas as fases da vida.
            Naquele dia chegando em casa dei um apertadíssimo abraço em mamãe e pedi a ela “mil desculpas” e vários perdões. Ela sorriu angelicalmente e disse que não fizera mais que uma obrigação de mãe. Não me contive novamente e deixei rolar algumas lágrimas pela face. Deixei a mochila no sofá e fui almoçar, refletindo muito sobre o ocorrido e prometendo que quando soubesse escrever contaria esta “História”. Passaram-se somente cinqüenta e cinco anos e o sonho acaba de concretizar-se , consegui escrever. Tá escrito. Lápis de Cor.